Dizem que tenho Alma de poeta. É possível, mas para além de poeta, sou mulher, fui criança, sou ser humano. Na grande maioria das vezes vejo e sinto coisas que só sei expressar por palavras, por imagens. É um jeito de ser... é o meu jeito de pôr a Alma no scriptum...

segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

Só mais um

Sempre - um tudo ou nada de quase nada: que se pensa ser tudo.
Difícil? sim; com a certeza que nada é certo, tudo se parece com uma outra coisa.
É assim que se recomeça: com uma mão cheia de nada, outra vazia de coisa nenhuma.
Quantos de nós, caíram já no lugar comum do : "quem me dera ter menos anos e saber o tudo que não sabia na altura"; e mesmo sabendo - depois - desejariam não o saber. Há coisas que não se devem saber nunca; que se desejem as coisas boas, deixando esquecidas as que aprendemos por um descuido da sorte ( que adormeceu - malandra - à sombra de uma felicidade inventada).
Nunca é tarde ( é à tarde que o sol sobranceiro se espreguiça na languidez dos dias ) para sonhamos; e cheios das coisas nenhumas da emoção - a que chamamos felicidade - podemos fazer das tardes a parte melhor do dia.
Encontrármos outras partes de nós em conversas - de quem não tem mais do que pedir da vida - e transformar em anedótica retórica as perdas que do corpo saem - em duras horas perdidas para tentar suprimir heranças pesadas - fazem deste mais um ano de todos os ganhos e de todas as perdas ( se um sempre e um tudo vos fizerem, ainda, algum tipo de significado). Mais virão - e outros mais - que farão deste apenas mais um - entre tantos outros- a ser lembrado ou esquecido, conforme a selectiva esperança de se aprender - sempre - mais  e mais qualquer coisa.




Sísifo



Recomeça....

Se puderes
Sem angústia
E sem pressa.
E os passos que deres,
Nesse caminho duro
Do futuro
Dá-os em liberdade.
Enquanto não alcances
Não descanses.
De nenhum fruto queiras só metade.

E, nunca saciado,
Vai colhendo ilusões sucessivas no pomar.
Sempre a sonhar e vendo
O logro da aventura.
És homem, não te esqueças!
Só é tua a loucura
Onde, com lucidez, te reconheças...



Miguel Torga

quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

Mudanças

imagem retirada da net, infelizmente não me lembro muito bem de onde
se alguém se sentir lesado é favor contactar e serão repostos os créditos


Recebi à pouco uma mensagem de uma amiga, uma mensagem de suposta reflexão a que o Natal nos obriga. Resolvi escrever também qualquer coisa - não um pensamento, não uma reflexão: qualquer coisa.
É por estas alturas que se começam a definir as decisões de novo ano( o síndrome do ano novo, como lhe chamo). Toda a gente se compromete a levar a cabo algumas mudanças (e é disso que me apetece falar, de mudanças).
2010 foi um ano difícil - difícil em termos sociais, difícil a um nível mais privado -, ficamos a saber (com a certeza pouco absoluta que uma economia em desgraça pode dar) aquilo que os Ingleses descobriram há quase um século: somos um país de gente ingovernável - que se governa tentando ter um pouco de esperteza a mais, para passar a perna ao próximo -  mas somos também capazes de dar e dar, embarcar em todas as solidariedades e campanhas que nos aparecem (sem sabermos ao certo a sua verdadeira fonte).  Pedem-nos para apertar o cinto e nós apertamos - mais  e mais até não haver furos no dito ( mas que se lixe, faz-se mais um e ainda se consegue apertar mais um pouco) - enquanto outros ( os mesmos) pouco ou nada alteram a sua condição.
 A esperança - essa que mesmo um pouco atordoada - continua a ser a mãe de todas as palavras que nos saltam da boca nesta  época festiva: para o ano será melhor (sim será melhor).
 É disso que  trata o natal, a esperança de que, mesmo com um futuro próximo pouco risonho se vá conseguindo andar ( dá-se daqui, dá-se dali e lá vamos caminhando).Mas são precisas mudanças, mudanças naquilo que é essencial - no fundo pôr cá para fora o que fazemos por dentro de portas -, não dar só por dar, mas exigir que se saiba a quem daremos e o porquê.
Orgulharmo-nos do nosso trabalho, da nossa nacionalidade, do nosso brio -  não só colocar defeitos ao trabalho, praticamente igual ao nosso, realizado pelo vizinho do lado.Orgulharmo-nos do que somos , do que produzirmos ( reparou se as suas prendas eram made in portugal? Então repare!) e enviar um sinal claro de baixo para cima - se não têm orgulho das vossas raízes, nós temos!
Porque é disso essencialmente que se trata, olhar para nós como gente, como povo, orgulharmo-nos da nossa diferença, de como conseguimos - com o nosso esforço e capacidade- chegar a algum lado (mesmo que sejam apenas uns metros mais à frente) e tentar, tentar sempre.
2010 foi um ano difícil, de mudanças, mas todas as mudanças têm aspectos bons e aspectos maus.
2011 será um novo ano de mudanças - todos os anos, todos os meses, todas as alturas são boas alturas de o fazer-, mudanças de estrutura, de visão, de atitude, porque nada é eterno e as vacas magras não durarão para sempre se nós as alimentarmos, com paciência, esforço e sabedoria.

Diferente ( mas fiel a mim mesma) só poderia ser algo assim a minha mensagem de Boas festas.

Para todos um feliz e Santo Natal e... comam doces que são uma óptima expressão da nossa Cultura/Portugalidade.

terça-feira, 21 de dezembro de 2010

Caixas vazias II

Que fazer então com as caixas, se já nenhum futuro promissor lhes caberá no interior? Nem de serventia, teriam já  qualquer sentido. Que fazer com elas, se ao lixo não as poderei atirar - ficariam a doer-me, na distância.
Pensei em colocá-las exactamente no mesmo local, de onde as havia tirado -de qualquer das formas, onde estavam não me incomodavam. Fui eu na minha eterna incapacidade de sossego, que as retirei do seu sonolento e inercio estar,  fui eu que lhes quis dar vida, quando toda a vida que fora sua se perdeu - no momento que tiveram o seu auge - na lembrança do momento que pretendiam guardar.
Encher as caixas de novas vidas - era essa a ideia genial - transforma-las em utilidades múltiplas do dia a dia, fundi-las com as rotinas que vestem (quer queiramos quer não) de segurança as nossas vidas.
O difícil é encontrar utilidades para encher as caixas: o difícil é encontrar sentidos nessas utilidades; o difícil é não voltar a transformar as caixas noutras de igual valor, mas agora cheias de coisas que nunca saberemos bem para que é que irão servir. 

Caixas vazias

Acabara de as empilhar, uma a uma; vazias, todas vazias, quase que se poderiam utilizar como instrumento de percursão - a sonoridade seria, sem sombra de dúvida, boa.
O que fariam ali, guardadas, tantas caixas vazias? Conseguia ainda definir de onde viera cada uma delas, mas era só. Esgotava-se aí, o porquê de manter guardado tanto lixo, com desculpa de recordação - os ditos souvenirs.
Arrancou-lhe um sorriso, a ideia (tão fantásticamente na moda) da reciclagem. Parecia-lhe bem, distribuir cada uma das caixas, por cada amigo que conseguisse rever nelas; mas não era seu feitio fazê-lo.
Olhou-as de novo - em arco-iris de cor e texturas, em confusão de origens - , não passavam de caixas vazias, que o tempo fez perder o  significado. No entanto, a ideia de desperdiçar algo, que teria sido importante - numa qualquer altura -, era inconcebível (era como retirar um pouco de si, deitando tudo fora).

Continua...

quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

Bolas...é Natal!

fotografia - Bolas...é natal!- de Joaquim Ferreira retirada do site Olhares

É indiscutível...chegou o Natal, até aqui neste espaço, por agora, não se fala de outra coisa. 
Talvez seja nestas alturas que se vejam as transparências, as sombras escondidas - ou projectadas nas paredes, para toda a gente ver - e  talvez muita gente prefira o colorido espalhafato da mediatização.
Cada um tem o direito de escolher a forma como gosta de viver os seus dias, ou a forma que se sente melhor. E não necessita de ser rígida, encaixada numa forma pré-concebida ou numa mobliária forma de ser algo, igual a tantas outras coisas.
O que é necessário, isso sim é que as memórias permaneçam, são elas que nos fazem mergulhar nas águas da nossa identidade, de pessoa, de vivências, de povo, de sociedade. E não falo apenas de memórias pessoais, mas de memórias colectivas, de lembranças como forma de guerra aberta contra os esquecimentos, contra aquilo que  não nos querem mostrar, para que se distraiam (as sensoriais formas do sentir) opiniões.
As coisas acontecem e continuam a acontecer, quer nos lembremos delas ou não. Mas, se não as soubermos não poderemos jamais lembrá-las.
É preciso procurar, por entre toda a festa que se espalha no ar, o verdadeiro sentido da luz, o verdadeiro sentido da busca, o verdadeiro sentir da troca com aquele que necessita.
E é aí que a verdade ocupa o seu lugar, ocupa o lugar no peito dos que sofrem, ocupa o lugar no peito daqueles que lembram os que lutaram pela igualdade de um mundo melhor: na sociedade, na comunidade, no seio da própria família.
É para eles que dedico este post, para aqueles que preenche as nossas memórias como exemplos de luta, de esperança, de crença no mundo melhor...



( em honra de uma das maiores mães que conheci... que ironicamente tem nome de uma linda nacionalidade: para si um grande beijinho, daqui para lá...)

terça-feira, 14 de dezembro de 2010

* Crónicas de uma terra qualquer * # 7



A imaginação do Homem aguça-lhe o engenho... até aqui nada de novo. Todos sabemos que os impossíveis são quase sempre alcançáveis, se prolongarmos por tempo suficiente a vontade de chegar a qualquer lado. Júlio Verne chegou à lua ou às profundezas das muitas léguas submarinas, muitos anos antes de um qualquer outro corpo real lá chegar.

E é natal, outra vez... De boca em boca saltitam os mesmos desejos, as mesmas vontades. As ruas teimam em iluminar-se, mesmo sabendo que as economias não reluzem nos bolsos. E sem a luz, que veste do espírito necessário as ruas, o natal não tinha o mesmo significado. Poderia passar despercebido aos olhares dos mais distraídos, ou dos mais desligados das mundanices associadas às épocas festivas.

Este ano, a "nossa" árvore, foi plantada em cima da fonte ( dantes iluminada e com repuxo, agora obrigada a alguma contenção, para que a electricidade não se incomode com a sua presença). Estranha a ideia, para alguns, a mim - de cada vez que lhe ponho a vista em cima - lembra-me a vontade - intriseca ao Homem - de querer sempre realizar os impossíveis. Lá está ela, imponente, bela e iluminada, lembrando que se a vontade assim o desejar, até as mais improváveis misturas poderão ser atingidas, sem curto-circuito.
Fica central, a árvore, iluminando o local com maior movimento- provavelmente- lembrando que até isso, os locais de maior importância, podem sempre ser alterados com a passagem do tempo.
Foi cruzamento, depois rotunda ( com o desnecessário sacrifício da palmeira, que a todo custo tentava crescer no local onde a plantaram) , em seguida fonte luminosa e também rotunda.

Só o Natal não muda, por muito que se tentem suavizar os espíritos. Mesmo em tempos de contenção, as ofertas de consumismo continuam a tentar os bolsos e as mentes, dos que pelas ruas se passeiam. A todo o custo, pretende-se realizar os desejos dos que connosco partilham os dias, mesmo que essa mistura de vontades e possibilidades seja bem mais difícil de atingir, do que a mistura da água com a luz...

sábado, 11 de dezembro de 2010

Reais exigências das existências


Somos ( cada um individualmente) uma única e pequena maravilha, dessa natureza muito mais que biológica.
Somamos ao mistério da máquina dinâmica -  a roçar a perfeição - uma outra capacidade: a de criarmos realidades.
Toma-se por medida de existência, que o real é palpável, mas a dimensão da realidade é muito mais abrangente do que esta permissa.
A dor, dói, é real, e mesmo assim impossível de visualizar ou até de comparar com qualquer termo, de uma qualquer medida, que pretenda colocar frente-a-frente duas dores aparentemente idênticas.
A dor é individual, invisível, imcomparável e imensurável, mas é real.
Se uma realidade não necessita de algo palpável, tangível ou mensurável para a sua existência, então que concluir se não que a realidade é algo que pode perfeitamente ser produzido por cada um de nós? Esta é uma arma potente!
Poderemos ser nós os produtores da nossa realidade? é quase um assumir, peremptóriamente o total controlo das acontecimentos, do estar feliz.
- Sei onde vou, sei onde pretendo chegar - é o bastante para colocar em marcha a produção daquilo que será ( é?) a nossa realidade.
Imaginando as nossas probabilidades de sucesso, os diferentes atalhos, temos o caminho para a realidade, que ao imaginada se pretente existencial...

segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

Reticências à paisagem

Foto de Nuno Chacoto retirada do site Olhares


Uma imensidão a perder de vista...faz-nos perder também os pensamentos, pular de ideia em ideia, ir e voltar- e no entanto nada à nossa volta mudou enquanto fomos e viemos montados nas asas do pensamento - a algum lugar que só nós conhecemos.
 A mente encadeia ideia a ideia, como correntes de pensamento, que ligam a uma enorme âncora ou simplesmente  como um jogo de saltos entre as diferentes texturas do chão...
Mas a imensidão a perder de vista continua lá..., sempre igual... As searas ou o que resta delas - ou as ervas que daninhas se assomam por todos os cantos - ondulam com um vento baforento,  que pouca ou nenhuma mossa nos faz...e as searas ondulam como se fossem uma eterna maré de castanhos, sem rumo, sem corrente que lhe indique o lugar para onde ir... e o pensamento voa, foge dali, preso que estão os olhos à quietude e monotonia do lugar, mas que mesmo assim nos enche as medidas e nos enforma.
Pensamentos perdidos muitas vezes, em misturas de várias ideias simultâneas... e a 
paisagem que parece não ter fim, mas que no fundo é logo ali, assim como logo ali está um qualquer momento pratico.
Ao voltar os olhos atrás, na busca dos pensamentos que entretanto cavalgaram para outras paragens, a imagem exactamente igual ainda lá está, imutável ( velhaca)... e talvez seja isso que nos leva a tanta reticência, a inúmeras esperas que um dia - enquanto o pensamento voa livre na paisagem - algo diferente aconteça: como a passagem de um bando de pássaros ou simplesmente a queda de uma lande ou de uma bolota ( com o seu tão característico efeito sonoro)
...

domingo, 28 de novembro de 2010

*Cronicas de uma terra qualquer* # 6

Jazem no chão. Em completo desalinho, os restos do que foram outrora as laranjeiras, permanecem agora caídas, espalhando folhas, ramos. As pequenas esferas laranja, lembrando miniaturas de sóis, preenchem o solo, colorindo a tristonha imagem de quem caiu em desgraça.
É a mudança. Chega muitas vezes trazendo consigo a bagagem da modernidade, transformando os locais, tentando substituir lembranças, marcar novas etapas, lavar a cara a sítios que parecem ter sido abandonados por aqueles que passam, olham, mas já não permanecem, cansados que estão das mesmas paisagens.
E é nesses momentos de mudança, que damos por nós a pensar como nos eram familiares os locais, como lhes vamos lembrar os pequenos pormenores, o que foram, como marcaram as (in)definidas lembranças dos nossos dias.
Necessárias serão para nos impulsionar para a frente, as mudanças. São as rupturas, a substituição do velho pelo novo, que nos acordam o saudosismo, e nos fazem muita vezes resistir a essa necessidade que nos é intriseca: mudar. Evoluir faz parte de todas as passagens, de todas as paisagens.
Assim as laranjeiras jazem no chão, esperando as limpezas do espaço, aguçando a curiosidade de quem passa: O que de novo se verá? o que virá marcar a diferença naquele espaço semi-morto já mais que habitual nos nosso dias?
Outras mudanças precederam estas, e assim os locais evoluem, tentando enamorar as características de uma qualquer terra ( nossas todas, um pouco) com as inovações necessárias à sobrevivência. E assim se vão preenchendo memórias para transmitir aos vindouros, de como eram , antes de o ser agora, os mesmos locais, com outras paisagens. E todas elas são nossas, essas imagens, que constroem as histórias que nos identificam como gente daqui e dali. É o saber de como era, antes de o ser agora, que constrói coesões entre as gentes, coesões entre as pertenças...
Espero-te, no final das alterações,  pequeno jardim, para que me ajudes a construir uma imagem do futuro que poderei colar ao passado do lugar...

( esta crónica segue sem imagem, porque me doeram ali deitadas no chão, em desgraça, as tão familiares laranjeiras)

sexta-feira, 26 de novembro de 2010

Rei Sol/ Estrela Mãe

foto de EA retirada do site olhares


E que estrela é essa, que de gigantesca capacidade, aquece e ilumina mundos visíveis e invisíveis, existentes no domínio físico ou multidimensional. 
Quem és tu - sempre presente - mesmo que de ti não se fale. 
Sem género, que de rei sol a estrela mãe passas, de mão em mão, ao bel prazer das necessidades e se de ti nos vem alimento, também por ti a alma se veste de cores alegres - pois que sem ti nada somos senão cinzentas formas de gelo, formando esculturas frias e paradas ,que de pouco de vida reproduzem aos mundos (  reais,sonhados e imaginados)
E a música que tocam em tua honra: saem de instrumentos batimentos ritmados, que te afastam, cantando a ti músicas doutras formas, para que te chegues e encostes o calor do teu corpo celeste, aquecendo muito mais do que almas.
Termino-te sol/estrela na escuridão de quem te quer fechar na mão, ignorando a grandeza que escondes na distância que a tudo obrigas...

quinta-feira, 25 de novembro de 2010

O amolador

Chove...já fez frio,mas a chuva leva as réstias da dureza que o frio trás aos dias. A liquidez da chuva permite que se escorram - por entre as margens do tempo - a solidez rígida dos dias que passam em seco.
Ouvi-o lá ao longe. A musicalidade daquele instrumento que chama a atenção, chamou a minha, chamou-me a mim... trouxe-me à memória uma cidade que também foi a minha - onde por graça se diz - que a sua presença trás a chuva.  Mas a chuva veio primeiro, desta vez.
Chego-me à janela , só para o ver passar..
Lá vai passando, de aspecto simples, tal como o imaginei. Talvez mais novo, mas rostos não mostram idades ( lição importante, aprendida à custa de vivênvias pesadas).
A música sopra-se-lhe pelos lábios de um instrumento tosto, que enfeitiça à passagem... e fico a vê-lo passar, amolando facas, vidas, experiências de quem faz da vida uma luta constante de sobrevivências e encontra nas mínimas coisas momentos de intenso prazer, tal como eu... gosto tanto do som molhado de um amolador...

segunda-feira, 22 de novembro de 2010

A tranca



Era uma tranca. Uma simples tranca de madeira, em formas perfeitas. Lá dentro guardava segredos - ou pelo menos assim imaginava - quando de fronte à porta e à sua tranca, sonhava que formas, objectos, inventos se podiam  esconder por detrás da porta fechada.
Simples na forma, não se poderia dizer tosca, apenas simples...
Um dia, um desses dias perdidos nos números do calendário, alguém teve a coragem para lhe mexer: surpresa! abriu sem o esforço previsível a que os anos a poderiam condenar.
Lá dentro nada de especial. Apenas velharias, objectos usados, coisas sem o menor valor ou utilidade. Não passava de uma porta fechada a esconder aquilo que ninguém necessitava utilizar...
A curiosidade e o sonho foi-se, perdeu-se desvanecido na imaginação do que poderia ser encontrado e simplesmente não foi.
Por vezes é melhor que certas portas permaneçam fechadas, estimulando o encontrar de tesouros. É bom deixar a imaginação voar, e quando a realidade, nua, crua e pouco romântica se esbate contra os nossos sonhos, ficamos a pensar apenas em como era linda, simples e misteriosa a tranca, antes de ser aberta...

quinta-feira, 18 de novembro de 2010

A forma de um sonho...

Toca a campainha. O som estridente ecoa pelo corredor praticamente vazio, como uma corrente de ar frio a tentar provocar remoinho. Consegue. O peso do cansaço, não consegue ganhar a batalha contra aquele som afiado. Levanto-me a custo e ela volta a soar, sempre me perguntei porque é que quem toca a campainha deseja secretamente que estejamos logo ali, atrás da porta...
Abro-a. Com a motoreta estacionada rente à porta, sentado no assento, sorriu-me. Não consigo deixar de sorrir, apesar do peso que carrego na fronte e nos olhos. Desculpa, acordei-te. Não! conseguiste chegar uns minutos antes da sorna. Voltamos a rir os dois. Olho de novo para ele, sentado na motoreta, mesmo rente à porta e não posso deixar de pensar nas pequenas maravilhas desta terra. Qual será o outro sitio em que o carteiro se mantém sentado, junto à porta, a encetar conversas como se tivéssemos 30 segundos de conversa de café, enquanto ele faz a sua obrigação.
Hoje é uma mão cheia! retira da bolsa um pequeno pacote e sinto os meus olhos abrirem, avidos da surpresa que guarda o pacote amarelado. Junto, uma carta à qual não dou o mínimo valor. Vejo o remetente e termino a dizer-lhe que afinal valeu a pena levantar-me. Vês? o carteiro até é um bom amigo, não traz só más noticias, vá e toma lá uma revistinha para leres na casa de banho. Fecho a porta ainda a rir, depois de lhe desejar bom trabalho. As mãos parecem presas, ao tentar livrar-me do pacote, para por a descoberto o que lá vem dentro...
Sinto-lhe o toque, macio, quero absorver o cheiro, todos os pequenos milésimos de segundo que constroem o momento, este momento, único. Observo-lhe as formas, as cores, quero guardar na estante das minhas memórias o momento...
Qual é a forma de um sonho?
Quantas formas, pesos, medidas lhe podemos dar. Observo-o quase emocionada. Pequeno, tal como o imaginei nestes últimos tempos, em que fui dando esta forma ao meu sonho. Cheira a novo, a falta de mãos, de poisos, quase que me observa, procurando preenchimentos humanos, mãos que o toquem, localizações possíveis e prováveis, para o encaminhar finalmente na realidade dos dias que se seguem...
Acaricio-o e fecho os olhos, uma lágrima espreita ao canto do olho, vem acompanhar o sorriso, aquele verdadeiro, vindo do fundo desta alma, que há muito tempo não presenteava a vida com um sorriso destes. E por tão importante não poderia vir sozinho. É única, escorre lentamente na face morrendo nos lábios...
Continuo a embalá-lo,como se me tivesse sido restituído um filho perdido. A vida leva...a vida traz de volta... mesmo que pelas formas misteriosas e incompreensíveis do destino.
Pouso-o finalmente e fico a olhá-lo orgulhosa...o meu livro...uma utopia tornada  realidade por misteriosos caminhos poéticos.
Deito-me de novo, e antes de embarcar no veleiro dos sonhos ainda  tenho tempo de pensar que, se calhar está na altura de fazer as pazes com esse ser superior, que aprendi na infância, nos leva ao colo quando não conseguimos andar sozinhos...

quarta-feira, 17 de novembro de 2010

Ardências


Arde ainda, tal como ardeu no primeiro momento em que alguém, num gesto de desligada incompreensão conseguiu a improvável faísca, que consumiu o que de combustível havia em seu redor. É agora apenas uma tímida chama, a manter viva a lembrança da fogueira, que consumiu toneladas da lenha, que naturalmente se carrega em braços para o seu próprio fim...
Ainda aquece, contida num pequeno lugar próprio para fins com e sem propósitos, propositadamente consumada por chamas minúsculas, que de quando em quando iluminam a escuridão que em redor tenta exorcizar o frio das noites que continuam gélidas...
São os propósitos humanos de conter as forças da natureza, que incontrolavelmente se desnorteiam, em espaços de tempo impossíveis de prevenir, pressentir ou precisar. Precisos instantes de afogueadas labaredas, em urgências brandamente apagadas com as lágrimas que o céu derrama, quando não se contenta com injustas queimadas...
Interna e externamente, eternamente consumidos, assim somos, contidos ou não, o fogo que nos arde no peito transborda mansa ou violentamente em magnânimos mantos de lava que por vezes consomem tudo em seu redor, preparando solos para outras novas incandescências...

terça-feira, 16 de novembro de 2010

A Face

Face, tela de Rui Nascimento

A face...janela de uma dimensão personalizada, para um interior familiar, que esconde os segredos contidos em qualquer moradia... outdoor publicitário, enganoso ou não, vende o produto de uma intimidade característica de quem a possui...

São traços, manchados por o que mais intimido define a conjunção dos dias. Vende sorrisos ou lágrimas em ocasiões (des) apropriadas por cada individual sentir.

A face, máscara que traz à luz um actor de grande porte, realizador de suas próprias vontades

A face, um bem de enganoso previlégio esconde vontades de se fazer valer maldosos conceitos, sem valor seguro, mas demasiado venerado pelas paletes de cor que transparece...

Produto de primeira necessidade, nos correntes dias...aprisionando por vezes quem dele não depende para valorizar o ser...


O ponto

O ponto. Pequeno sinal de grandes efeitos, local de encontro de finais e princípios...Início de algo, que por não dito, fica implícito em sentidos que poderão ser deduzidos em pontos comuns. Sentenças de um dizer que não admite dúvidas. Dúvidas que se transformam em afirmativas formas de alguma ou nenhuma aceitação.
Separador de ideias, acumulador de discursos, de dizeres, de saberes, que se unem em torno de um pequeno ponto. Sinalização certeira que transforma uma linha de pensamento, em infinitas formas de ciência e razão.
Terminus de uma declaração de intenções, inicio de uma intenção de construção escrita...
Escritos, implicitamente falados, os pontos determinam os caminhos que seguimos, o que deixamos para trás, as direcções que pretendemos dar ao futuro.
Conjunto de encontros entre duas formas opostas de saber, letras e números em consonância, numa dança de regras que pretendem organizar narrativas, formas de expressão, numeradas explicações da vida...
O ponto, pequeno sinal da grandeza demonstrativa que se formam de pequenos nadas as sapiências da vida

sexta-feira, 12 de novembro de 2010

D. Alice



Posso falar de tamanhos. Tamanha pode ser a grandeza da quantidade humana que se pode encontrar num pequeno corpo. Um olhar de criança, felicidade contida nos olhos, que a idade permitiu, a certeza de  ter visto muita coisa. Coisas que de certeza não sei, não conheço, e na probabilidade que se podem dar as certezas, que tanta gente desconhece.
As marcas do tempo na face e no corpo, as debilidades próprias de quem vê a juventude já ida, não lhe acorrentam as vontades de ser jovem. E não fossem as marcas visíveis, ninguém lhe daria a idade que tem.
Assim é D. Alice. De braços abertos à chegada de estranhos, que por mãos amigas lhe chegam. O orgulho na sua gente , nas suas raízes, transborda em seu redor, e extravasa naqueles que com ela compartilham o sangue. Foi o seu saber, a sua vivacidade, que transmitiu aos seus, aquela alegria e orgulho nas suas origens, no seu modo de vida.
Dando o melhor do que é seu, D. Alice recebe a vida e o que os outros lhe têm para dar.
Tem a musicalidade na alma, e nunca se nega a cantar as suas vivências. Misturada entre um arco-íris de idades, D. Alice é a mais jovem de todos. As horas não passam, o corpo não cansa enquanto houver alegria e algo a compartilhar. Despindo-se do seu conforto, não guarda o melhor para si, para que todos se sintam em casa.
E aquela foi de facto a minha casa. Ali revivi uma forma de estar na vida à qual tinha fechado os olhos, em compassos de vida que agora pretendo fechar na gaveta. São outros sons os que ouvi ali. Uma pequena grande lição. De braços abertos podemos dar e retribuir o melhor de nós e de certeza sermos felizes.
As durezas da vida, não endureceram a perspectiva de vida desta grande senhora. Um sorriso aberto e largo, que transmitiu à sua prol, aos seus pintos. E não a julguem galinha velha. A juventude habita em si , como habita em todos aqueles que negam ao tempo as suas marcas, restituindo com amizade e alegria as amarguras da vida.
São os pequenos gestos que fazem grandes as pessoas...
Obrigado D. Alice pelos seus braços abertos, pela sua alegria e pelo que ensina apenas pelo seu jeito de ser, a todos quantos a conhecem.
Porque a nossa gente é gente boa apesar da incerteza que por vezes a vida contém...

quarta-feira, 10 de novembro de 2010

*Crónicas de uma terra qualquer* # 5

Foto de Luis Nilton Corrêa retirada do site Olhares


Está velha, a torre. Como velhas estão as paredes deixadas ao abandono por quem se preocupa, hoje mais do que nunca, com as pessoas e os seus problemas de sobrevivência.
No entanto, se faltar ao fim do dia ou àquelas horas em que o movimento da terra se torna mais suave, o som dos sinos a badalarem as horas repetidas a cada 12 horas, parece que uma tristeza que ninguém sabe de onde vem, se abate sobre os dias que as pessoas teimam em fazer diferentes. Mas as pessoas gostam de rotinas. São as rotinas , algumas, que as mantêm ligadas como que por um fio invisível a uma qualquer vida que imaginaram ser a sua. É esse o ofício do relógio da torre. Para além de bater as horas dos dias, bate também no interior de cada um de nós e lembra-nos que estamos em casa. Porque a nossa casa, a nossa terra é construída, constituída, por pequenos pormenores rotineiros que vamos apreendendo como sendo nossos, como pertencendo aos nossos dias, dando-lhes alguma segurança e sobretudo a sensação de pertença.
Mas a torre está velha, mesmo com os sinos a teimarem não perder a sua voz. A torre lembra nestes dias, a tristeza que vai nos olhos de quem passa apressado na rua. As coisas bonitas deixaram de ter tanta importância. Hoje o que preocupa são as bases, o necessário, o incontornável. Desde que vá tocando, já ninguém repara nas paredes velhas a necessitarem pintura, já ninguém quer saber que, se rodeados de maior beleza talvez nos sintamos melhor, nós os que passamos. E é por deixarmos de nos importar com as coisas que nos tornam mais felizes, que nos afundamos em preocupações de sobrevivência em vez de em alegrias de vivência.
A torre está velha, a necessitar de pintura, e todos podem fazê-la brilhar naquele que é o seu lugar, naquela que é a sua função, de novo. Se se lembrarem, que em conjunto, têm mais poder, mais ideias, mais valor, as pessoas da Terra não vão deixar a torre perder a sua beleza.
Juntar forças em tempos de sacrifícios, sempre foi uma regra primordial humana desde os tempos mais remotos, será que ainda nos lembramos desses velhos ensinamentos que aprendemos nos livros de história? Será que ainda sabemos que não é deixando entrar a tristeza, não é deixando cair a beleza, que vamos conseguir manter vivas as torres das nossas terras?

Fim de tarde

foto flying to you de António Leão retirada do site olhares


Fim de tarde. A enorme esfera laranja no firmamento, pincela em tons de fogo o mar e céu. Lá mais abaixo eles discutem. As vozes exaltadas chegam-me e escapam-se rasgando a privacidade da praia aparentemente solitária. 
As vozes mentem. Disparam palavras ocas que desfiguram o que as faces mostram. Em vão...tanta palavra gasta em vão, em frases que por si só não dizem nada. Evocam factos que contrariam os sinais dos corpos. 
Afasto-me, não me interessam zangas onde apesar conseguir extrair verdades, não posso interferir. Bastam-me os meus silêncios, a espera absurda na tentativa de saber de ti, de nós. Bastam-me as saudades com que gostas de me vestir, para que me olhe ao espelho e me sinta confortável só com o que é meu. 
Faltam- me o brilho da tua pele, o som da tua voz, a segurança das palavras sensatas com que me presenteias nas tuas presenças. É a tua presença que me falta agora, para a perfeição. Viciaste-me da tua conversa presente. 
Desço até ao mar e molho os pés, sorrio e apercebo-me que fui feliz, irra fui feliz nos momentos que partilhamos, ainda tão próximos na minha pele, e tão salgados como esta água que beija os pés. 
E não quero, não quero vestir a capa, quero continuar a molhar-me em ti ...


Reeditado


5.07.2010

terça-feira, 9 de novembro de 2010

Naturalidades


foto de Rui J Santos retirada do grupo amantes da fotografia do facebook


Balança ao vento, leve... Ao fundo, o céu pinta-se das cores de mais um fim de dia. O fogo da luz poente queima o horizonte e as nuvens fingem um fumo espesso, de uma tarde ardente que se vai a cada segundo em que sol se vai escondendo, mais e mais. 
Brinca com a sua própria fragilidade, deixando que o vento lhe balance a pequena linha que a torna recta. Toda ela dança, como se fosse impossível que as raízes se afastem da Terra mãe que a agarra à vida, e que lhe mantém a seiva dinâmica que a sustem.
Esquece-se, por momentos, que basta uma brisa descontrolada para que tudo se vá, e deixa-se ir na dança, feliz. Assiste ao espectáculo de luz e movimento, a natureza no seu perfeito equilíbrio, sem temer uma menos responsável atitude do vento, brincalhão...
E uma tarde de sol poente, ardente, ganha contornos de eternidade para a pequena silvestre dançarina, esquecida que se fez, da efemeridade, para tornar um momento, num retalho da sua feliz naturalidade 


segunda-feira, 8 de novembro de 2010

A flor



Uma flor como outra qualquer. De especial, apenas o sitio onde a plantaram...Nasceu envolta em sorrisos música, muitas e muitas palavras, que a faziam sentir-se acompanhada, mesmo sabendo que demasiadas vezes as palavras não lhe eram dirigidas, e em todas elas, a resposta era-lhe naturalmente impossível. Talvez tenham sido palavras a mais, a natureza também necessita de silêncio, tal como o dia se completa com a noite.
Uma flor...nasceu com uma matriz diferente das demais que a rodeavam, mas isso não saltava à vista facilmente. Raiada, misturava cor, num conjunto estranho. Dei com ela numa manhã calma. Numa manhã daquelas em que o sol parece querer abraçar-nos com o seu agasalho quente, enquanto o vento se debate para apoiar um Inverno que não se quer fazer rogado.
Entre sorrisos, e músicas, lá estava ela, parada, ouvindo tudo, como se quisesse fazer parte de todos os momentos que a vida desfolhava naquela manhã.
Decidi trazê-la comigo...guardada numa imagem que posso reproduzir, em que posso comandar sombras e fazer brilhar cores. Guardada no meu bloco de memórias visuais, a flor e a sua imagem lembram-me que imagens são apenas isso mesmo, que manipuladas ao nosso gosto, nunca ião substituir aquela flor, mesclada de cores de fogo que permaneceu viva através da alegria que a rodeia...

domingo, 7 de novembro de 2010

A bruxa

A bruxa - tela de Rui Nascimento


Povoa o nosso imaginário desde tenra idade, trazida pelas histórias fantásticas contadas à lareira por aqueles que não sabem onde a colocar nas prateleiras da história e da imaginação. Encarna os terrores, a maldade, os horrores com que a desesperança pinta as nossas frustrações. É atirada para um exterior desconhecido e lá magica desgraças para recolher os proveitos do sofrimento alheio. E existe apenas em nós, quando baixamos os braços e nos deixamos vencer pelos nossos próprios medos. Existe apenas no interior das imagens que reproduzimos para as nossas perdas. A bruxa é a imagem das derrotas que evitamos assumir quando paramos de lutar e acreditar. Dando-lhe forma, exorcitamos as nossas histórias e devolvemos-lhe os contornos fantásticos de personagem imaginária que encarna as lutas que temos que travar contra as nossas próprias limitações. É esse o papel das bruxas em todas as nossas histórias reais ou imaginárias...

Reflexões imaginadas



Há sons que não se conseguem descrever, por muito que se tente.
A água escorre por entre os obstáculos do caminho, se fechar os olhos parece que chove, mas não, é apenas a água a queixar-se de todas as imperfeições que encontra no seu caminho... E como é consolador ouvi-la queixar-se ( como se as queixas pudessem consolar alguém), mas de qualquer forma o choro dolente da água que passa, transmite uma paz que só os encontros com a natureza conseguem dar. É quase uma verdade,  daquelas sem possibilidade de refutação, os encontros com a natureza conseguem devolver-nos a paz interior, seja essa a natureza que nos rodeia, ou a nossa própria natureza.
O sol parece querer lutar com o frio que se sente e que acompanha as cores de que se vestiram as copas das árvores, como se no seu próprio código, ambos soubessem os significados presentes em cada  nova cor.
O espelho de água devolve a vaidade da paisagem e o ribeiro corre alheio aos meus pensamentos. Os montes envolvem-nos num abraço protector, mas não demasiado apertado, como se desejassem dar-nos liberdade para nos movimentarmos e contemplarmos todo o esplendor que nos rodeia.
Ali perdida ou tão somente achada nos meus pensamentos percebo que são as pequenas coisas, os pequenos momentos de reflexão como estes, que me enchem o peito de uma energia crescente capaz de me impulsionar em frente contra as tempestades dos nosso dias que temos que ultrapassar para conseguirmos alcançar os nossos objectivos...

terça-feira, 2 de novembro de 2010

*Crónicas de uma terra qualquer * # 4 // Cidões



Como todas as tradições trazidas das profundezas dos tempos ancestrais, pelo frágil fio condutor da oralidade, ninguém sabe onde exactamente é que começou...Há quem acredite que foram os Celtas que trouxeram estas celebrações nos seus cultos à mãe natureza.
Assim numa aldeia perdida entre os silenciosos e iluminados montes do norte do nosso país, uma aldeia como tantas outras espalhadas por esse país fora, mantêm-se vivas as memórias de tempos perdidos, festejando-se ainda as tradições e as festas populares. Mas não é só a tradição que se celebra. Celebra-se a vida, que parece querer abandonar a velha aldeia, que no seu dia a dia mantém  rotinas iguais desde há décadas atrás, e que foi perdendo os seus rebentos em favor de aglomerados de gente que se rendeu ou foi obrigada a render-se à chegada da modernidade. Essa vida que chega nos rostos de todos aqueles que mantêm ali as suas raízes apesar de florescerem em terras distantes, ou de todos aqueles que como eu vêm trazidos pelo gosto ao que é nosso, ao que ainda é genuíno e que mantém a nossa identidade como povo e como gente.
E ali celebra-se a vida e a música, o companheirismo e a arte de bem receber, há sempre uma porta aberta e um sorriso pronto a ser oferecido o outros que ninguém sabe de onde vêm e de onde são, mas que são sempre bem vindos e onde ninguém se faz rogado a partilhar o pão, o vinho , a carne e a música que nasceu no peito e do trabalho daquelas gentes e que partilham com todos como se amigos de longa data se tratassem. É aqui que ainda se pratica a expressão bem portuguesa, amigos dos meus amigos meus amigos são...
A noite começa aquecida pela enorme fogueira que afugenta o incómodo das noites frias que trás o inicio de Novembro. As labaredas afogueiam a caminho dos céus, iluminado a noite e as vidas. Dizem que simboliza a renovação,o renascimento, a transformação do que foi mau em algo novo que se quer precioso e vivo como as chamas que aquecem e iluminam a noite. A cabra machorra ( leia-se matchorra e significa que a cabra é estéril, ou seja não procriou ) é cozinhada e distribuída por todos os que aqueles que ali se encontram, cozinhada de forma aguçar o apetite exigente de quem gosta do que é bom e tradicional, o vinho banha e multiplica-se pelos copos escorrendo nas gargantas secas de quem convive e canta. Aqui e ali grupos de gente inicia espontâneamente os seus cantares e partilham-se cantigas e moditas que todos sabem e que todos aprendem...



 O Diabo chega na sua carroça barulhenta e vem saber quem comeu a cabra. Na sua volta pela povoação vai espalhando o "terror", semeando o caos e a desordem à sua passagem e o barulho invade a noite que é trespassada pelos risos e pelas brincadeiras que ninguém leva a mal e que fazem parte da alma das gentes... Por fim é servida a queimada uma aguardente de sabor surpreendente e que é servida ainda em fogo.



Termina-se a noite com as voltas à fogueira pedindo-se que o novo ano que com o inverno se pretende que renasça, traga prosperidade e boas vivências. A música e a boa disposição preenche o resto. Gente amiga e acolhedora espalha alegria pelos que os rodeiam e mantém vivo o que por inadaptação estaria condenado à morte lenta. Mas é o amor ao que é nosso , que nos caracteriza, o amor à vida e à forma de bem viver que mantém esta forma de sermos gente e que vai mantendo viva, através da perpetuação dos festejos, uma tradição que ao passar de geração em geração atravessa a longa cruzada dos tempos, levando ecos das nossas vivências através dos milénios.

sábado, 30 de outubro de 2010

O pássaro

Tela de Rui Nascimento de nome pássaro




Foi um sonho ou talvez tenha sido realidade...
Um pássaro voava no céu aberto, esse céu de Inverno, aquecido pela luz de um sol ameno. De asas abertas o pássaro abarcava todo o meu campo visual , como se o céu fossem as suas asas ou as suas asas fossem o próprio céu.
A cauda em penas de nuvens, quase imperceptiveis aponta-lhe as direções e estupefata vejo-o dirigir-se a mim em suave voo. De mansinho, entra-me no peito, batendo suas asas em uníssono ao ritmo do meu coração.





sexta-feira, 29 de outubro de 2010

Esquecimento



Talvez seja o esquecimento. É disso que se foge, é provavelmente disso que se tem medo. Que se esqueçam rostos, atitudes, compreensões ou os ins delas próprias. No fundo não são os fins que se temem, mas apenas o vazio do esquecimento. O nada, no lugar que antes era ocupado por alguma coisa ou alguém. Nem que seja apenas um olhar um toque de uma mão, que com a sua pele enrugada pelas dores ou alegrias que a vida pode trazer ( cada ruga, cada vinco na pele é um sinal de um sorriso ou de uma lágrima que ficou imprimida como um  fóssil biológico na nossa capa), que nos garantam que o esquecimento, o buraco cinzento da falha de memória não ocupa ainda o nosso lugar ou o de alguém...
Porque as memórias lembram-nos quem somos , quem fomos, são elas que nos levam aos lugares comuns e aos mais incomuns, próprios apenas de legados singulares dessa massa ainda complexa com as formas que se balançam nos limbos das recordações...
Memórias são os livros de instruções que nos guiam nos caminhos desconhecidos e que nos levam ao futuro...esquecer é desvalorizar o quanto foi nosso, quanto foi dado, quanto foi recebido. Esquecer é o nada, pior que o fim...esquecer é o vazio, o não conhecimento, o não proveito do que nos foi proporcionado...Esquecer é a pior de todas as tristezas...não é a morte que vence a vida, mas sim o esquecimento...

O beijo



Imagem retirada da internet



Ao de leve, vou sentindo o toque fofo das pequenas almofadas carnudas, vestidas de vermelho rubor. Quero roubá-las para mim, mas não consigo. A suave humidade que me passas, faz-me desejar ter sede da fonte onde a àgua que sabe a ti não seca. O calor que emanas percorre-me o ponto onde te toco e nossos lábios se envolvem numa dança que faz continuar a música pelos corpos. Desce devagar a vibração, e os lábios mantém-se unidos como que entrelaçados, saciando a sede mútua. Ela entra, primeiro envergonhada na ansia de explorar o mais que dali pode vir e encontram-se algures a meio, comunicando em estranhas danças selvagens, com todos os pontos cardeais do desejo espalhados pelas rosas dos ventos dos nossos corpos, a adivinharem tempestade. E a dança de roda que praticam entrelaça desejos e desperta o fogo escondido nas profundezeas da terra fértil. Separadas por um qualquer pequeno descuido da memória ficam a sonhar-se. Dançaram ambas abertamente com os desejos e as vontades furtadas...


18/04/2010

reeditado

quinta-feira, 28 de outubro de 2010

O pó



A janela está aberta, não de todo aberta mas com as persianas subidas de modo a que mesmo por entre o pó acumulado dos vidros que não vêm pano à muito tempo, consegue perfeitamente ver a rua. Lá fora observa o movimento rotineiro da passagem daqueles a quem o tempo não sobra, nunca sobra. É a falta, a falta de tempo, de paciência, a falta do básico, do menos básico, a falta da satisfação da realização do ter, do querer. A mente vagueia por entre aquelas mentes que passam e que julga que vão deixando farrapos de si pelo caminho para que alguém , talvez ela as apanhe.
E o vidro com pó começa a tomar acrescentado valor nos seus olhares
Há quanto tempo não limpas o pó dos vidros?
Desculpa? nesse momento ergueu os olhos do livro, que invariavelmente a absorve , como se o mundo à sua volta se tornasse um vazio, como se o livro absorvesse não só a sua atenção mas também todo o mundo palpável, existente em seu redor.
Perguntei à quanto tempo não limpas os vidros?
Como se a pergunta não tivesse qualquer valor, voltou a pousar os olhos no livro e disse sem qualquer interesse Não faço a menos ideia, isso é um assunto que não me preocupa minimamente.
Não se consegue ver nada de jeito lá para fora...
E o que queres tu ver, daí só se conseguem ver carros a passar, a vizinhança ou morreu ou não aparece durante o dia, e eu tenho coisas bem mais interessantes para fazer do limpar vidros.
Não sei, às vezes podia ser que se conseguisse ver alguma coisa menos monótona, diferente...
Tudo nesta rua é sempre igual. É a rotina que parece fazer com que as pessoas se mantenham sãs. Por esta altura desviou o olhar do livro, com curiosidade naquilo que a amiga responderia.Conhecia-lhe aqueles ímpetos de conversa para jogar fora de que necessitava, como que a justificar a loucura pacata de um dia-a- dia que não trazia nada de novo há  tempo demais.
Será mesmo que é a rotina que nos mantém a sanidade, ou não será ela a causa do automatismo das reacções, do fazer por fazer, do fazer por ver outros fazerem igual?
Não acreditas no bom senso, no juízo independente de cada pessoa?
Tu vês isso nos teus dias?
Ultimamente não me tenho debruçado sobre o assunto. Comentou deixando transparecer um sorriso trocista
Ultimamente não te tens debruçado sobre coisa nenhuma a não ser os teus livros, rematou, acusando a ironia, o que acaba por confirmar o que eu acabei de dizer, simplesmente não procuras mais, porque estás automatizada e julgas que assim te sentes confortável.
Afinal, o que queres tu fazer? mudar o mundo de um dia para o outro?
O mundo não, os dias...
Quais dias?
Os meus, enchê-los, pintá-los, colori-los, dar-lhes voz...
Sentes-te insatisfeita outra vez?
Talvez não insatisfeita, muito mais sub-aproveitada, como só metade de mim funcionasse e a outra metade estivesse simplesmente adormecida.
Não consigo entender esses teus ímpetos de insatisfação, a mim parece-me que te trazem apenas ansiedade.
Pode ser, mas também são eles que me fazem por momentos, realmente feliz... como se o puzzle da minha vida necessitasse de peças de todas as cores, além dos diferentes contornos, para completar a imagem pretendida.
Foi nessa altura que voltou ao livro, sabia que a conversa tinha terminado. Ela voltou a olhar a rua como que procurando na mesma rotina da paisagem algo infinitamente novo, que pudesse servir de bóia, para a salvar do naufrágio na rotina diária...

terça-feira, 26 de outubro de 2010

Os grilhões da querença

À flor da pele! - Foto de mcpial retirada do site olhares


Sei que te amei...não te explico, não me explico...explicações complicam a simplicidade de um coração que bate na presença de um pequeno som que se identifica de imediato, numa pequena parte do corpo que não necessita trazer acoplada toda a grandeza do resto, para se identificar como a tal... aquela que que nos faz vibrar sem toques , sem sequer necessitar da deslocação do sopro de ar que provocas...
O peito eleva-se acima das nuvens, numa eterna avidez do teu ar, que caminha em minha volta e me apura os sentidos.Todos os pedaços sensitivos em mim te auscultam, mantendo a distância, mas sentindo os sentidos todos, como poderosos marcadores da tua presença. Mas não estás , não foste, não és...presença imaginada dos atordoados temores das perdas, assim são as paixões e os sentidos, os corpos distantes, sonhados em uníssonos, mas nunca encontrados em avidez real. E o tempo passa, e o corpo apaga-se de vontades, os sentidos desmobilizam da sua dança de presenças activas e alertas, e fica o resto... esta saudade que pesa na imaginação que voa, sempre que a liberto dos grilhões da querença de deixar ir... ao sabor do vento...espalhar essa tempestade de sentidos que provocas à tua passagem...

segunda-feira, 25 de outubro de 2010

A beira do abismo



Sim, já lá estive, à beira do abismo. Julguei que  a altura potenciasse a vertigem que sentia. Enganei-me. A paisagem arrancou-me do meu pesadelo e levou-me a voar em sonhos para outros mundos para outras paragens. A água que corria límpida ao longe em fervoroso transbordo hipnotizou-me, e o som da cadência da cascata levou-me em meditação. A vida, sempre a vida, o sonho sempre o sonho. O desespero das palavras presas num lugar onde não cabiam, a alma grande demais sem conseguir conter-se no coração humano que bate a um ritmo demasiado lento em relação aos pensamentos, à fúria de viver. Sim já lá estive...mas voltei inebriada, pela força da natureza que me ensinou que a vontade não serve só para fingir que se vive, a força vive dentro de nós transformando a nossa potência natural naquilo em que somos... E soltei as palavras , gritei-as ao vento para que as levasse para longe e com elas a necessidade de espreitar a beira do abismo, onde não me encaixo...


7 de Março de 2010
reeditado

sábado, 23 de outubro de 2010

Recordações




O telefone tocou e ela enroscou-se ainda mais nos lençois, como se desejasse que aquele barulho irritante parasse de vez. Mas o telefone não dava mostras de se querer calar. Sem vontade carregou no botão - estou?-
Do outro lado uma voz calma , mansa, de mulher respondeu-lhe. Havia qualquer coisa naquela voz que lhe parecia familiar, como se em milésimos de segundos a sua memória recuasse muitos e muitos anos. Num tubo em espiral passaram imagens há muito perdidas nas páginas passadas do tempo. Caiu exactamente naquele dia em que, entre brincadeiras na rua, onde ambas eram princesas, a chuva daqueles primeiros dias de Outubro começou a cair copiosamente, misturando o cheiros da Terra quente de um Verão ainda tão presente com a pureza da águas que as nuvens deixavam cair anunciando uma nova época. À chuva, ambas de braços abertos a rir, ignoravam as vozes que as chamavam a casa, anunciando o fim das brincadeiras de rua... nesse ano tudo mudou, a mudança de vida dos pais dela levou-a para longe. Nunca mais lhe ouviu a voz ou o riso ou até a cara, e agora ali estava ela com a certeza que do outro lado da linha, ouvia aquela voz, como se a repetição continua das primeiras chuvas de Outono lhe tivessem trazido de volta as memórias. A vida é sempre uma surpresa, e a sua continua suposta repetição pode trazer de volta aqueles que à muito pensamos perdidos ou esquecidos.- " que bom que é ouvir de novo a tua voz !"...


Para a edição de Outubro da Fábrica de Letras

sexta-feira, 22 de outubro de 2010

*Crónicas de uma terra qualquer * # 3

Foto de Guilherme Limas retirada do site olhares


Há terras que nascem ao pé do mar, umas à beirinha, quase que a molhar os pés na água fria e outras mais distantes, mas ainda ouvindo o seu burburinho em dias em que se sente mal-disposto. Mas há outras terras, que embora à beira-mar plantas ficam distantes, para lá dos montes, em beirais semi-fechados aos litorais onde não chega a cor nem a voz do mar.
Era ainda miúda e não pensava que a visão de uma coisa para mim tão natural como as ondas de um mar nesse dia enfurecido, pudessem causar nas expressões tanta surpresa, tanto mistério, tanta paixão. Falantes de uma mesma língua, com diferentes paisagens nos olhos, diferentes experiências de vida, assim eramos nós. Crianças em intercâmbio cultural... e o que é a cultura senão a troca de experiências, de gostos, de vivências, a troca do que a nós nos dizia muito, no pouco que ainda tinhamos visto do mundo e da vida.
Percebi facilmente a expressão do olhar de quem pela primeira vez viu o mar, quando o vi pela primeira vez. Correndo calmo e sereno, deitado no seu leito de paz, adornado pelos verdes sucalcos de onde pequenas bagas nasciam, entre o verde da paisagem, colorindo o horizonte por onde se olhava. E o céu e o verde que parecia descer pelos montes reflectia-se nas águas como se um enorme postal animado de vida se tratasse. E o silêncio, aquele silêncio pautado aqui e ali pelos homens que trabalham a terra, embelezando-a para se ver ao espelho no rio... Chamam-lhe de Ouro, porque não há outro que em si reflita tão mansa e fielmente os lugares valiosos por onde vai passando. Chamam-lhe Douro por que alimenta nas suas margens liquidos preciosos que alimentam um povo.
Ficou-me na memória como a mais preciosa de todas as fotos que guardei na minha mente...É este o grande valor de todos os intercâmbios, dar o que se tem, receber o que outros têm de melhor e guardar como parte da cultura pessoal que vamos alargando ao longo da vida.

Palavras

Há alturas em que as palavras faltam, vão-se. Como se o grande vazio que me preenche conquistasse o último resquicio de vida que sempre me sobra, que são as palavras que se formam, brotando continuamente da pedra em jeito de nascente de água, de onde invariavelme voltarão a nascer vontades e esperanças mesmo que incompreensíveis. Nessas alturas são outras palavras, as escritas, as pensadas pelos outros, que me dão alento... Porque se o maior veiculo de transmissão que temos é a linguagem, à que aproveitar todas as suas potencialidades, todas as suas formas sentidas e marcadas por sinais visiveis ou apenas perceptíveis aos mais sensíveis. A inteligência permitiu-nos a linguagem, que fomos moldando às inúmeras diferenças que apresentamos...Tantas formas de expressão... tantos pensamentos... todos válidos...todos verdadeiros pelo menos no momento em que são expressos, mesmo que depois se esfumem e não passem de momentos a ser vividos e interpretados por outros que se revejam nas palavras que alguém lançou ao vento...

segunda-feira, 18 de outubro de 2010

Uma outra viagem









Foi a minha primeira grande viagem, a única até agora. Como em todas as minhas memórias guardo dela apenas as pequenas coisas e não as de monta como a grande maioria dos viajantes. Apenas o captado pelos olhos que me toca ao coração me fica guardado em forma de memória, tudo o resto se vai perdendo em finas areias de pó como se nunca se tivesse passado... é um passado perdido. Passei pela primeira vez o oceano, essa imensa massa de água que distancia terras, paisagens e pinta de cores e temperaturas diferentes o imenso mundo, mas que guarda para lá da lonjura, corações que batem ao mesmo ritmo que os nossos. 
Foi dos inúmeros descolares e aterrares que ganhei a única fobia que me conheço... um simples caixote de metal que transporta gentes pelo céu e que me faz perder a noção da realidade...mas não foi disso que vim falar aqui...
Foi o calor, que não se assusta com dias cinzentos, muito pelo contrário, ainda se assanha mais, foi o azul do mar a perder de vista que esconde um caldo sedoso que guarda promessas falsas de refresco, foi aquele verde quase a tocar o azul que se misturam num doce bailado do ir e vir ondulado... e foram as pessoas. Não aquelas programadas para agradar a todo e qualquer disparate requerido por uma cara meio pálida de bolsos cheios, as outras, aquelas que encontrei no mercado, guardado a ferro e fogo e onde cheguei apenas e só por pura teimosia.
Foi lá que o vi. Não teria na altura mais do que os poucos anos que o meu filho soma, será por esta altura um homem. Sentado junto à palmeira, fazendo de uma raiz mais curiosa das superficies o seu banco, devorava com tanta atenção um livro de escola que não pude deixar de reparar nele, por entre bugigangas, telas pintadas à mão e outras ofertas absolutamente idênticas a outras tantas que já tinha visto. 
À força de tanto o olhar, obriguei-lhe a atenção em mim. Chamou-me no seu espanhol e eu aproximei-me. Pediu-me ajuda... nas mãos um livro de inglês onde tentava aprender os rudimentos de uma língua que seria o seu ganha pão, o seu futuro. Talvez o receio tenha aproximado um familiar que não seria muito mais velho que eu, mas que o tempo não se coibira de deixar marcas prematuras na pele. E falámos... não sei precisar o tempo que falámos... a casa de telhado de colmo, o burro como meio de transporte, a fome que espreitava a cada esquina em época baixa... e o eterno sorriso na face e nos olhos, como se nada disso fosse de facto problema de monta. E a cada novo tema de conversa a nova pergunta... e isto, como se diz? ir respondendo foi a minha magra contribuição para aquela criança que provavelmente me perdeu por entre tantos outros rostos que foi encontrando a cada nova semana, que traz consigo o ganha pão vindo de terras distantes. Mas ele veio comigo, atravessou o oceano do tempo e seguirá em mim como exemplo de como uma criança aprende cedo que a melhor forma de viver é não apagar o sorriso mesmo enfrentando dificuldades que quem não vê tem dificuldade em imaginar... Não foi o luxo, as infrastruturas, não foram sequer as supostas lembranças que se trazem de uma lua, que era enorme por lá e que se queria de mel. Foi aquela criança que preencheu em grande plano o que guardo da minha viagem. Porque as minhas memórias se fazem muito mais com o sentir do que com o tão simples observar...




Em 17 de Agosto de 2010
Reeditado

Caminhos



Subimos a avenida, tentando arranjar estacionamento ainda difícil apesar da hora. Passa-me pela ideia que provavelmente há uns anos atrás, toda esta confusão para arranjar sitio para comer me traria alguma indigestão. Sentamo-nos e pedimos os petiscos ainda disponíveis. Estou diferente. É diferente a forma como encaro a vida, como encaro o que me acontece, até talvez como encaro os outros e a mim própria...
Um conjunto engraçado de gente que se juntou à mesa, quatro pessoas, todos divorciados, três completamente desconhecidos entre si, em torno de uma amiga em comum que aprecia a nossa presença num dia especial. As conversas vagueiam entre o trivial e desvendar de vidas pautadas por coisas boas e menos boas. Descobrem-se segredos, confessam-se penas, sonhos, esperanças entre piadas que vou contando para animar a noite e não deixar que a desesperança preencha espaços vazios. Ao fundo a música latina anima o ambiente, soltando notas e imagens através de um canal que me foi impossível identificar e à minha frente, talvez embalada pelas baladas, a vida do casal que se atreveu tentar de novo vai-se fortificando em carinhos e beijos. Deste lado da mesa a conversa gira em torno da educação dos filhos.Passam horas divertidas e alguém pede uma bebida. Não aceito, os quilómetros que me esperam e a noção de responsabilidade falam mais alto. Estou diferente, sinto-me diferente, demasiadas vezes a noção de responsabilidade me fez parar, quando devia ter avançado. Conheço-me o suficiente para saber os meus limites e decido aceitar. O travo doce e suave da bebida ligeiramente pastosa, misturada com a acidez do álcool sabe-me bem e permite-me uma ínfima sensação de felicidade por me conseguir libertar por momentos do fantasma da perfeição.
A noite chega ao fim. O carro estacionado sem cuidado entre os outros encontra-se agora sozinho, embora na avenida ainda circulem demasiadas luzes numa cidade que também quer teimar em não parar. Muitos mundos distantes se cruzam tão próximos nestas vias movimentadas.
De frente para o Marquês vejo passar-lhe por cima um avião com as suas luzes psicadélicas, e tenho a ilusão optica que o avião não vai falhar a cabeça do Marquês. Riu à gargalhada, por muito visionário que fosse, nunca o Marquês sonharia com pássaros de ferro a sobrevoar-lhe a cabeça.
Faço a rotunda e entro no túnel, obrigada a diminuir a velocidade pelos controlo de radar. Quantas vezes durante os últimos anos a minha vida me pareceu um túnel, obrigada a abrandar constantemente... Perdida em pensamentos, falho a saída para a ponte. Esta é uma das coisas que me agrada em Lisboa, é que tal como na vida, quando erramos o caminho podemos facilmente encontrar outra forma de seguirmos o nosso trajecto, basta procurar...