Dizem que tenho Alma de poeta. É possível, mas para além de poeta, sou mulher, fui criança, sou ser humano. Na grande maioria das vezes vejo e sinto coisas que só sei expressar por palavras, por imagens. É um jeito de ser... é o meu jeito de pôr a Alma no scriptum...

segunda-feira, 18 de outubro de 2010

Uma outra viagem









Foi a minha primeira grande viagem, a única até agora. Como em todas as minhas memórias guardo dela apenas as pequenas coisas e não as de monta como a grande maioria dos viajantes. Apenas o captado pelos olhos que me toca ao coração me fica guardado em forma de memória, tudo o resto se vai perdendo em finas areias de pó como se nunca se tivesse passado... é um passado perdido. Passei pela primeira vez o oceano, essa imensa massa de água que distancia terras, paisagens e pinta de cores e temperaturas diferentes o imenso mundo, mas que guarda para lá da lonjura, corações que batem ao mesmo ritmo que os nossos. 
Foi dos inúmeros descolares e aterrares que ganhei a única fobia que me conheço... um simples caixote de metal que transporta gentes pelo céu e que me faz perder a noção da realidade...mas não foi disso que vim falar aqui...
Foi o calor, que não se assusta com dias cinzentos, muito pelo contrário, ainda se assanha mais, foi o azul do mar a perder de vista que esconde um caldo sedoso que guarda promessas falsas de refresco, foi aquele verde quase a tocar o azul que se misturam num doce bailado do ir e vir ondulado... e foram as pessoas. Não aquelas programadas para agradar a todo e qualquer disparate requerido por uma cara meio pálida de bolsos cheios, as outras, aquelas que encontrei no mercado, guardado a ferro e fogo e onde cheguei apenas e só por pura teimosia.
Foi lá que o vi. Não teria na altura mais do que os poucos anos que o meu filho soma, será por esta altura um homem. Sentado junto à palmeira, fazendo de uma raiz mais curiosa das superficies o seu banco, devorava com tanta atenção um livro de escola que não pude deixar de reparar nele, por entre bugigangas, telas pintadas à mão e outras ofertas absolutamente idênticas a outras tantas que já tinha visto. 
À força de tanto o olhar, obriguei-lhe a atenção em mim. Chamou-me no seu espanhol e eu aproximei-me. Pediu-me ajuda... nas mãos um livro de inglês onde tentava aprender os rudimentos de uma língua que seria o seu ganha pão, o seu futuro. Talvez o receio tenha aproximado um familiar que não seria muito mais velho que eu, mas que o tempo não se coibira de deixar marcas prematuras na pele. E falámos... não sei precisar o tempo que falámos... a casa de telhado de colmo, o burro como meio de transporte, a fome que espreitava a cada esquina em época baixa... e o eterno sorriso na face e nos olhos, como se nada disso fosse de facto problema de monta. E a cada novo tema de conversa a nova pergunta... e isto, como se diz? ir respondendo foi a minha magra contribuição para aquela criança que provavelmente me perdeu por entre tantos outros rostos que foi encontrando a cada nova semana, que traz consigo o ganha pão vindo de terras distantes. Mas ele veio comigo, atravessou o oceano do tempo e seguirá em mim como exemplo de como uma criança aprende cedo que a melhor forma de viver é não apagar o sorriso mesmo enfrentando dificuldades que quem não vê tem dificuldade em imaginar... Não foi o luxo, as infrastruturas, não foram sequer as supostas lembranças que se trazem de uma lua, que era enorme por lá e que se queria de mel. Foi aquela criança que preencheu em grande plano o que guardo da minha viagem. Porque as minhas memórias se fazem muito mais com o sentir do que com o tão simples observar...




Em 17 de Agosto de 2010
Reeditado

Sem comentários:

Enviar um comentário