quinta-feira, 28 de outubro de 2010
O pó
A janela está aberta, não de todo aberta mas com as persianas subidas de modo a que mesmo por entre o pó acumulado dos vidros que não vêm pano à muito tempo, consegue perfeitamente ver a rua. Lá fora observa o movimento rotineiro da passagem daqueles a quem o tempo não sobra, nunca sobra. É a falta, a falta de tempo, de paciência, a falta do básico, do menos básico, a falta da satisfação da realização do ter, do querer. A mente vagueia por entre aquelas mentes que passam e que julga que vão deixando farrapos de si pelo caminho para que alguém , talvez ela as apanhe.
E o vidro com pó começa a tomar acrescentado valor nos seus olhares
Há quanto tempo não limpas o pó dos vidros?
Desculpa? nesse momento ergueu os olhos do livro, que invariavelmente a absorve , como se o mundo à sua volta se tornasse um vazio, como se o livro absorvesse não só a sua atenção mas também todo o mundo palpável, existente em seu redor.
Perguntei à quanto tempo não limpas os vidros?
Como se a pergunta não tivesse qualquer valor, voltou a pousar os olhos no livro e disse sem qualquer interesse Não faço a menos ideia, isso é um assunto que não me preocupa minimamente.
Não se consegue ver nada de jeito lá para fora...
E o que queres tu ver, daí só se conseguem ver carros a passar, a vizinhança ou morreu ou não aparece durante o dia, e eu tenho coisas bem mais interessantes para fazer do limpar vidros.
Não sei, às vezes podia ser que se conseguisse ver alguma coisa menos monótona, diferente...
Tudo nesta rua é sempre igual. É a rotina que parece fazer com que as pessoas se mantenham sãs. Por esta altura desviou o olhar do livro, com curiosidade naquilo que a amiga responderia.Conhecia-lhe aqueles ímpetos de conversa para jogar fora de que necessitava, como que a justificar a loucura pacata de um dia-a- dia que não trazia nada de novo há tempo demais.
Será mesmo que é a rotina que nos mantém a sanidade, ou não será ela a causa do automatismo das reacções, do fazer por fazer, do fazer por ver outros fazerem igual?
Não acreditas no bom senso, no juízo independente de cada pessoa?
Tu vês isso nos teus dias?
Ultimamente não me tenho debruçado sobre o assunto. Comentou deixando transparecer um sorriso trocista
Ultimamente não te tens debruçado sobre coisa nenhuma a não ser os teus livros, rematou, acusando a ironia, o que acaba por confirmar o que eu acabei de dizer, simplesmente não procuras mais, porque estás automatizada e julgas que assim te sentes confortável.
Afinal, o que queres tu fazer? mudar o mundo de um dia para o outro?
O mundo não, os dias...
Quais dias?
Os meus, enchê-los, pintá-los, colori-los, dar-lhes voz...
Sentes-te insatisfeita outra vez?
Talvez não insatisfeita, muito mais sub-aproveitada, como só metade de mim funcionasse e a outra metade estivesse simplesmente adormecida.
Não consigo entender esses teus ímpetos de insatisfação, a mim parece-me que te trazem apenas ansiedade.
Pode ser, mas também são eles que me fazem por momentos, realmente feliz... como se o puzzle da minha vida necessitasse de peças de todas as cores, além dos diferentes contornos, para completar a imagem pretendida.
Foi nessa altura que voltou ao livro, sabia que a conversa tinha terminado. Ela voltou a olhar a rua como que procurando na mesma rotina da paisagem algo infinitamente novo, que pudesse servir de bóia, para a salvar do naufrágio na rotina diária...
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