Dizem que tenho Alma de poeta. É possível, mas para além de poeta, sou mulher, fui criança, sou ser humano. Na grande maioria das vezes vejo e sinto coisas que só sei expressar por palavras, por imagens. É um jeito de ser... é o meu jeito de pôr a Alma no scriptum...

sábado, 30 de outubro de 2010

O pássaro

Tela de Rui Nascimento de nome pássaro




Foi um sonho ou talvez tenha sido realidade...
Um pássaro voava no céu aberto, esse céu de Inverno, aquecido pela luz de um sol ameno. De asas abertas o pássaro abarcava todo o meu campo visual , como se o céu fossem as suas asas ou as suas asas fossem o próprio céu.
A cauda em penas de nuvens, quase imperceptiveis aponta-lhe as direções e estupefata vejo-o dirigir-se a mim em suave voo. De mansinho, entra-me no peito, batendo suas asas em uníssono ao ritmo do meu coração.





sexta-feira, 29 de outubro de 2010

Esquecimento



Talvez seja o esquecimento. É disso que se foge, é provavelmente disso que se tem medo. Que se esqueçam rostos, atitudes, compreensões ou os ins delas próprias. No fundo não são os fins que se temem, mas apenas o vazio do esquecimento. O nada, no lugar que antes era ocupado por alguma coisa ou alguém. Nem que seja apenas um olhar um toque de uma mão, que com a sua pele enrugada pelas dores ou alegrias que a vida pode trazer ( cada ruga, cada vinco na pele é um sinal de um sorriso ou de uma lágrima que ficou imprimida como um  fóssil biológico na nossa capa), que nos garantam que o esquecimento, o buraco cinzento da falha de memória não ocupa ainda o nosso lugar ou o de alguém...
Porque as memórias lembram-nos quem somos , quem fomos, são elas que nos levam aos lugares comuns e aos mais incomuns, próprios apenas de legados singulares dessa massa ainda complexa com as formas que se balançam nos limbos das recordações...
Memórias são os livros de instruções que nos guiam nos caminhos desconhecidos e que nos levam ao futuro...esquecer é desvalorizar o quanto foi nosso, quanto foi dado, quanto foi recebido. Esquecer é o nada, pior que o fim...esquecer é o vazio, o não conhecimento, o não proveito do que nos foi proporcionado...Esquecer é a pior de todas as tristezas...não é a morte que vence a vida, mas sim o esquecimento...

O beijo



Imagem retirada da internet



Ao de leve, vou sentindo o toque fofo das pequenas almofadas carnudas, vestidas de vermelho rubor. Quero roubá-las para mim, mas não consigo. A suave humidade que me passas, faz-me desejar ter sede da fonte onde a àgua que sabe a ti não seca. O calor que emanas percorre-me o ponto onde te toco e nossos lábios se envolvem numa dança que faz continuar a música pelos corpos. Desce devagar a vibração, e os lábios mantém-se unidos como que entrelaçados, saciando a sede mútua. Ela entra, primeiro envergonhada na ansia de explorar o mais que dali pode vir e encontram-se algures a meio, comunicando em estranhas danças selvagens, com todos os pontos cardeais do desejo espalhados pelas rosas dos ventos dos nossos corpos, a adivinharem tempestade. E a dança de roda que praticam entrelaça desejos e desperta o fogo escondido nas profundezeas da terra fértil. Separadas por um qualquer pequeno descuido da memória ficam a sonhar-se. Dançaram ambas abertamente com os desejos e as vontades furtadas...


18/04/2010

reeditado

quinta-feira, 28 de outubro de 2010

O pó



A janela está aberta, não de todo aberta mas com as persianas subidas de modo a que mesmo por entre o pó acumulado dos vidros que não vêm pano à muito tempo, consegue perfeitamente ver a rua. Lá fora observa o movimento rotineiro da passagem daqueles a quem o tempo não sobra, nunca sobra. É a falta, a falta de tempo, de paciência, a falta do básico, do menos básico, a falta da satisfação da realização do ter, do querer. A mente vagueia por entre aquelas mentes que passam e que julga que vão deixando farrapos de si pelo caminho para que alguém , talvez ela as apanhe.
E o vidro com pó começa a tomar acrescentado valor nos seus olhares
Há quanto tempo não limpas o pó dos vidros?
Desculpa? nesse momento ergueu os olhos do livro, que invariavelmente a absorve , como se o mundo à sua volta se tornasse um vazio, como se o livro absorvesse não só a sua atenção mas também todo o mundo palpável, existente em seu redor.
Perguntei à quanto tempo não limpas os vidros?
Como se a pergunta não tivesse qualquer valor, voltou a pousar os olhos no livro e disse sem qualquer interesse Não faço a menos ideia, isso é um assunto que não me preocupa minimamente.
Não se consegue ver nada de jeito lá para fora...
E o que queres tu ver, daí só se conseguem ver carros a passar, a vizinhança ou morreu ou não aparece durante o dia, e eu tenho coisas bem mais interessantes para fazer do limpar vidros.
Não sei, às vezes podia ser que se conseguisse ver alguma coisa menos monótona, diferente...
Tudo nesta rua é sempre igual. É a rotina que parece fazer com que as pessoas se mantenham sãs. Por esta altura desviou o olhar do livro, com curiosidade naquilo que a amiga responderia.Conhecia-lhe aqueles ímpetos de conversa para jogar fora de que necessitava, como que a justificar a loucura pacata de um dia-a- dia que não trazia nada de novo há  tempo demais.
Será mesmo que é a rotina que nos mantém a sanidade, ou não será ela a causa do automatismo das reacções, do fazer por fazer, do fazer por ver outros fazerem igual?
Não acreditas no bom senso, no juízo independente de cada pessoa?
Tu vês isso nos teus dias?
Ultimamente não me tenho debruçado sobre o assunto. Comentou deixando transparecer um sorriso trocista
Ultimamente não te tens debruçado sobre coisa nenhuma a não ser os teus livros, rematou, acusando a ironia, o que acaba por confirmar o que eu acabei de dizer, simplesmente não procuras mais, porque estás automatizada e julgas que assim te sentes confortável.
Afinal, o que queres tu fazer? mudar o mundo de um dia para o outro?
O mundo não, os dias...
Quais dias?
Os meus, enchê-los, pintá-los, colori-los, dar-lhes voz...
Sentes-te insatisfeita outra vez?
Talvez não insatisfeita, muito mais sub-aproveitada, como só metade de mim funcionasse e a outra metade estivesse simplesmente adormecida.
Não consigo entender esses teus ímpetos de insatisfação, a mim parece-me que te trazem apenas ansiedade.
Pode ser, mas também são eles que me fazem por momentos, realmente feliz... como se o puzzle da minha vida necessitasse de peças de todas as cores, além dos diferentes contornos, para completar a imagem pretendida.
Foi nessa altura que voltou ao livro, sabia que a conversa tinha terminado. Ela voltou a olhar a rua como que procurando na mesma rotina da paisagem algo infinitamente novo, que pudesse servir de bóia, para a salvar do naufrágio na rotina diária...

terça-feira, 26 de outubro de 2010

Os grilhões da querença

À flor da pele! - Foto de mcpial retirada do site olhares


Sei que te amei...não te explico, não me explico...explicações complicam a simplicidade de um coração que bate na presença de um pequeno som que se identifica de imediato, numa pequena parte do corpo que não necessita trazer acoplada toda a grandeza do resto, para se identificar como a tal... aquela que que nos faz vibrar sem toques , sem sequer necessitar da deslocação do sopro de ar que provocas...
O peito eleva-se acima das nuvens, numa eterna avidez do teu ar, que caminha em minha volta e me apura os sentidos.Todos os pedaços sensitivos em mim te auscultam, mantendo a distância, mas sentindo os sentidos todos, como poderosos marcadores da tua presença. Mas não estás , não foste, não és...presença imaginada dos atordoados temores das perdas, assim são as paixões e os sentidos, os corpos distantes, sonhados em uníssonos, mas nunca encontrados em avidez real. E o tempo passa, e o corpo apaga-se de vontades, os sentidos desmobilizam da sua dança de presenças activas e alertas, e fica o resto... esta saudade que pesa na imaginação que voa, sempre que a liberto dos grilhões da querença de deixar ir... ao sabor do vento...espalhar essa tempestade de sentidos que provocas à tua passagem...

segunda-feira, 25 de outubro de 2010

A beira do abismo



Sim, já lá estive, à beira do abismo. Julguei que  a altura potenciasse a vertigem que sentia. Enganei-me. A paisagem arrancou-me do meu pesadelo e levou-me a voar em sonhos para outros mundos para outras paragens. A água que corria límpida ao longe em fervoroso transbordo hipnotizou-me, e o som da cadência da cascata levou-me em meditação. A vida, sempre a vida, o sonho sempre o sonho. O desespero das palavras presas num lugar onde não cabiam, a alma grande demais sem conseguir conter-se no coração humano que bate a um ritmo demasiado lento em relação aos pensamentos, à fúria de viver. Sim já lá estive...mas voltei inebriada, pela força da natureza que me ensinou que a vontade não serve só para fingir que se vive, a força vive dentro de nós transformando a nossa potência natural naquilo em que somos... E soltei as palavras , gritei-as ao vento para que as levasse para longe e com elas a necessidade de espreitar a beira do abismo, onde não me encaixo...


7 de Março de 2010
reeditado

sábado, 23 de outubro de 2010

Recordações




O telefone tocou e ela enroscou-se ainda mais nos lençois, como se desejasse que aquele barulho irritante parasse de vez. Mas o telefone não dava mostras de se querer calar. Sem vontade carregou no botão - estou?-
Do outro lado uma voz calma , mansa, de mulher respondeu-lhe. Havia qualquer coisa naquela voz que lhe parecia familiar, como se em milésimos de segundos a sua memória recuasse muitos e muitos anos. Num tubo em espiral passaram imagens há muito perdidas nas páginas passadas do tempo. Caiu exactamente naquele dia em que, entre brincadeiras na rua, onde ambas eram princesas, a chuva daqueles primeiros dias de Outubro começou a cair copiosamente, misturando o cheiros da Terra quente de um Verão ainda tão presente com a pureza da águas que as nuvens deixavam cair anunciando uma nova época. À chuva, ambas de braços abertos a rir, ignoravam as vozes que as chamavam a casa, anunciando o fim das brincadeiras de rua... nesse ano tudo mudou, a mudança de vida dos pais dela levou-a para longe. Nunca mais lhe ouviu a voz ou o riso ou até a cara, e agora ali estava ela com a certeza que do outro lado da linha, ouvia aquela voz, como se a repetição continua das primeiras chuvas de Outono lhe tivessem trazido de volta as memórias. A vida é sempre uma surpresa, e a sua continua suposta repetição pode trazer de volta aqueles que à muito pensamos perdidos ou esquecidos.- " que bom que é ouvir de novo a tua voz !"...


Para a edição de Outubro da Fábrica de Letras

sexta-feira, 22 de outubro de 2010

*Crónicas de uma terra qualquer * # 3

Foto de Guilherme Limas retirada do site olhares


Há terras que nascem ao pé do mar, umas à beirinha, quase que a molhar os pés na água fria e outras mais distantes, mas ainda ouvindo o seu burburinho em dias em que se sente mal-disposto. Mas há outras terras, que embora à beira-mar plantas ficam distantes, para lá dos montes, em beirais semi-fechados aos litorais onde não chega a cor nem a voz do mar.
Era ainda miúda e não pensava que a visão de uma coisa para mim tão natural como as ondas de um mar nesse dia enfurecido, pudessem causar nas expressões tanta surpresa, tanto mistério, tanta paixão. Falantes de uma mesma língua, com diferentes paisagens nos olhos, diferentes experiências de vida, assim eramos nós. Crianças em intercâmbio cultural... e o que é a cultura senão a troca de experiências, de gostos, de vivências, a troca do que a nós nos dizia muito, no pouco que ainda tinhamos visto do mundo e da vida.
Percebi facilmente a expressão do olhar de quem pela primeira vez viu o mar, quando o vi pela primeira vez. Correndo calmo e sereno, deitado no seu leito de paz, adornado pelos verdes sucalcos de onde pequenas bagas nasciam, entre o verde da paisagem, colorindo o horizonte por onde se olhava. E o céu e o verde que parecia descer pelos montes reflectia-se nas águas como se um enorme postal animado de vida se tratasse. E o silêncio, aquele silêncio pautado aqui e ali pelos homens que trabalham a terra, embelezando-a para se ver ao espelho no rio... Chamam-lhe de Ouro, porque não há outro que em si reflita tão mansa e fielmente os lugares valiosos por onde vai passando. Chamam-lhe Douro por que alimenta nas suas margens liquidos preciosos que alimentam um povo.
Ficou-me na memória como a mais preciosa de todas as fotos que guardei na minha mente...É este o grande valor de todos os intercâmbios, dar o que se tem, receber o que outros têm de melhor e guardar como parte da cultura pessoal que vamos alargando ao longo da vida.

Palavras

Há alturas em que as palavras faltam, vão-se. Como se o grande vazio que me preenche conquistasse o último resquicio de vida que sempre me sobra, que são as palavras que se formam, brotando continuamente da pedra em jeito de nascente de água, de onde invariavelme voltarão a nascer vontades e esperanças mesmo que incompreensíveis. Nessas alturas são outras palavras, as escritas, as pensadas pelos outros, que me dão alento... Porque se o maior veiculo de transmissão que temos é a linguagem, à que aproveitar todas as suas potencialidades, todas as suas formas sentidas e marcadas por sinais visiveis ou apenas perceptíveis aos mais sensíveis. A inteligência permitiu-nos a linguagem, que fomos moldando às inúmeras diferenças que apresentamos...Tantas formas de expressão... tantos pensamentos... todos válidos...todos verdadeiros pelo menos no momento em que são expressos, mesmo que depois se esfumem e não passem de momentos a ser vividos e interpretados por outros que se revejam nas palavras que alguém lançou ao vento...

segunda-feira, 18 de outubro de 2010

Uma outra viagem









Foi a minha primeira grande viagem, a única até agora. Como em todas as minhas memórias guardo dela apenas as pequenas coisas e não as de monta como a grande maioria dos viajantes. Apenas o captado pelos olhos que me toca ao coração me fica guardado em forma de memória, tudo o resto se vai perdendo em finas areias de pó como se nunca se tivesse passado... é um passado perdido. Passei pela primeira vez o oceano, essa imensa massa de água que distancia terras, paisagens e pinta de cores e temperaturas diferentes o imenso mundo, mas que guarda para lá da lonjura, corações que batem ao mesmo ritmo que os nossos. 
Foi dos inúmeros descolares e aterrares que ganhei a única fobia que me conheço... um simples caixote de metal que transporta gentes pelo céu e que me faz perder a noção da realidade...mas não foi disso que vim falar aqui...
Foi o calor, que não se assusta com dias cinzentos, muito pelo contrário, ainda se assanha mais, foi o azul do mar a perder de vista que esconde um caldo sedoso que guarda promessas falsas de refresco, foi aquele verde quase a tocar o azul que se misturam num doce bailado do ir e vir ondulado... e foram as pessoas. Não aquelas programadas para agradar a todo e qualquer disparate requerido por uma cara meio pálida de bolsos cheios, as outras, aquelas que encontrei no mercado, guardado a ferro e fogo e onde cheguei apenas e só por pura teimosia.
Foi lá que o vi. Não teria na altura mais do que os poucos anos que o meu filho soma, será por esta altura um homem. Sentado junto à palmeira, fazendo de uma raiz mais curiosa das superficies o seu banco, devorava com tanta atenção um livro de escola que não pude deixar de reparar nele, por entre bugigangas, telas pintadas à mão e outras ofertas absolutamente idênticas a outras tantas que já tinha visto. 
À força de tanto o olhar, obriguei-lhe a atenção em mim. Chamou-me no seu espanhol e eu aproximei-me. Pediu-me ajuda... nas mãos um livro de inglês onde tentava aprender os rudimentos de uma língua que seria o seu ganha pão, o seu futuro. Talvez o receio tenha aproximado um familiar que não seria muito mais velho que eu, mas que o tempo não se coibira de deixar marcas prematuras na pele. E falámos... não sei precisar o tempo que falámos... a casa de telhado de colmo, o burro como meio de transporte, a fome que espreitava a cada esquina em época baixa... e o eterno sorriso na face e nos olhos, como se nada disso fosse de facto problema de monta. E a cada novo tema de conversa a nova pergunta... e isto, como se diz? ir respondendo foi a minha magra contribuição para aquela criança que provavelmente me perdeu por entre tantos outros rostos que foi encontrando a cada nova semana, que traz consigo o ganha pão vindo de terras distantes. Mas ele veio comigo, atravessou o oceano do tempo e seguirá em mim como exemplo de como uma criança aprende cedo que a melhor forma de viver é não apagar o sorriso mesmo enfrentando dificuldades que quem não vê tem dificuldade em imaginar... Não foi o luxo, as infrastruturas, não foram sequer as supostas lembranças que se trazem de uma lua, que era enorme por lá e que se queria de mel. Foi aquela criança que preencheu em grande plano o que guardo da minha viagem. Porque as minhas memórias se fazem muito mais com o sentir do que com o tão simples observar...




Em 17 de Agosto de 2010
Reeditado

Caminhos



Subimos a avenida, tentando arranjar estacionamento ainda difícil apesar da hora. Passa-me pela ideia que provavelmente há uns anos atrás, toda esta confusão para arranjar sitio para comer me traria alguma indigestão. Sentamo-nos e pedimos os petiscos ainda disponíveis. Estou diferente. É diferente a forma como encaro a vida, como encaro o que me acontece, até talvez como encaro os outros e a mim própria...
Um conjunto engraçado de gente que se juntou à mesa, quatro pessoas, todos divorciados, três completamente desconhecidos entre si, em torno de uma amiga em comum que aprecia a nossa presença num dia especial. As conversas vagueiam entre o trivial e desvendar de vidas pautadas por coisas boas e menos boas. Descobrem-se segredos, confessam-se penas, sonhos, esperanças entre piadas que vou contando para animar a noite e não deixar que a desesperança preencha espaços vazios. Ao fundo a música latina anima o ambiente, soltando notas e imagens através de um canal que me foi impossível identificar e à minha frente, talvez embalada pelas baladas, a vida do casal que se atreveu tentar de novo vai-se fortificando em carinhos e beijos. Deste lado da mesa a conversa gira em torno da educação dos filhos.Passam horas divertidas e alguém pede uma bebida. Não aceito, os quilómetros que me esperam e a noção de responsabilidade falam mais alto. Estou diferente, sinto-me diferente, demasiadas vezes a noção de responsabilidade me fez parar, quando devia ter avançado. Conheço-me o suficiente para saber os meus limites e decido aceitar. O travo doce e suave da bebida ligeiramente pastosa, misturada com a acidez do álcool sabe-me bem e permite-me uma ínfima sensação de felicidade por me conseguir libertar por momentos do fantasma da perfeição.
A noite chega ao fim. O carro estacionado sem cuidado entre os outros encontra-se agora sozinho, embora na avenida ainda circulem demasiadas luzes numa cidade que também quer teimar em não parar. Muitos mundos distantes se cruzam tão próximos nestas vias movimentadas.
De frente para o Marquês vejo passar-lhe por cima um avião com as suas luzes psicadélicas, e tenho a ilusão optica que o avião não vai falhar a cabeça do Marquês. Riu à gargalhada, por muito visionário que fosse, nunca o Marquês sonharia com pássaros de ferro a sobrevoar-lhe a cabeça.
Faço a rotunda e entro no túnel, obrigada a diminuir a velocidade pelos controlo de radar. Quantas vezes durante os últimos anos a minha vida me pareceu um túnel, obrigada a abrandar constantemente... Perdida em pensamentos, falho a saída para a ponte. Esta é uma das coisas que me agrada em Lisboa, é que tal como na vida, quando erramos o caminho podemos facilmente encontrar outra forma de seguirmos o nosso trajecto, basta procurar...

quinta-feira, 14 de outubro de 2010

Humanos...

foto de José Manuel Durão retirado do site Olhares

Por vezes as palavras faltam. Ficam presas no qualquer lugar frio e escuro, que imagino como um tubo negro que me percorre as entranhas, até se esvaziar em sopro sem som, que se encolhe ou se expande enquanto o peito se movimenta nos obrigatórios  suspiros de vida. E as palavras, onde ficam? E de que servem palavras, se são gestos como o simples acto de respirar que nos mantêm vivos? E porque não se movem as pessoas? Porque preferem chorar lágrimas de dor e desilusão abraçadas à inércia do muito pensar e nada fazer.
Porque tendemos em correr para o lado oposto daquele que verdadeiramente ambicionamos? porque insistimos em ficar parados quando queremos correr? Porque tanto me questiono em vez de agir? sinto-me em tanta questão, como uma música que vai perdendo o ritmo e a vivacidade. Pretendo transformar palavras em ações, mas os porquês consomem-me. Sinto mas é um sentir distante, como se a sombra de mim mesmo que abandonando o real, se movesse com autonomia, fazendo o que o corpo não faz. Ou tudo não passem de palavras ocas de um coração que ao bater, recente o eco dos que lhe passam próximo, tão próximo que se conseguem baralhar batimentos, ritmos e frequências...
E é em ti... que a rua desemboca em beco, enquanto as perguntas me invadem uma imaginação retorcida e empobrecida. E o belo esplendor da confusão das palavras e perguntas pensadas e faladas mistura-se numa heterogénea sinfonia com as ações tomadas e aquelas que se desejam tomar. E damos a mão ao desconhecido e esquecemos o que ao lado se figura, a sombra que se soltou, a imagem que aparece distorcida no peito... sofremos pelos que estão longe, pelos que estão perto pelos que queremos, pelos estranhos que nos comovem. Abolimos a paz e transformamos em guerra retalhos de amor...amamos e perdemos as palavras algures numa passagem negra, calando gritos de prazer, para não despertar um corpo que nos pode amar e atraiçoar...erramos, acertamos e por isso nos chamam humanos...irmãos...em humilde humus misturados numa terra que só nós podemos fertilizar...

terça-feira, 12 de outubro de 2010

Ensino sobre a descrença

foto de Jorge Matos retirada do site olhares

...Falar-te-ei agora de vazios meu filho, desses vazios que nos deixam tão frios por dentro, como se alguma coisa algum dia, tivesse sugado a vida e o calor que nos pulsa nas veias e nas artérias e que nos aquece a pele provocando rubores, que nos impedem do cinzentismo das pedras frias e inertes. Sabes do que falo , meu filho? desses dias em que o sol deixa de enviar a sua luz que pinta às cores o nosso mundo e o torna a preto na ausência da cor e que nem o branco povoa qualquer espécie de lugar, dando um aspecto igual a tudo...
E quando isso acontece, sem aviso, já não há remédio, nem cura, nem mezinha que se possa aplicar para curar o que quer que seja que provocou o vazio. E nunca ninguém sabe o que é meu filho.
É desse vazio que invade tudo e rouba o brilho do olhar, que te protejo, todos os dias, quero que o conheças, para que o enfrentes se ele te afrontar. Quero revestir tuas paredes do melhor de todos os calafetantes, para que nem uma nesga desse frio te roce no corpo. E por isso o procurei, porque só vendo se conhece, só sentindo se descobre e não de ouvir falar ou dizer. Conhecedora dos seus artifícios meu filho, roubaram-me os risos que me iluminavam o rosto, mas encheram-me a memória de palavras sábias, conhecimentos, vivências para que te os possa passar e impedir assim, que este vazio te chegue, te invada, te cubra, querendo que com a minha luta te ilumine os dias que estarão para vir....

segunda-feira, 11 de outubro de 2010

* Crónicas de uma terra qualquer * # 2

Foto  contemplando III de Henrique Mello retirada do site olhares


Todas as terras têm um louco. Pode até haver bem mais do que um , mas existe sempre um, o característico, o de estimação. Aqui também existe um louco. Mas é um louco aparentemente feliz. Digo aparentemente porque a cara dele há muito que não emite expressão. Observando-lhe apenas a face não se lhe denota dor, nem frio, nem alegria, nem qualquer outro sentimento a que se recorrem as pessoas ditas normais. É dono de uma expressão sem qualquer expressão, como qualquer louco que se preze.
O nosso louco é cantor. Nunca consegui perceber, em tantos anos que o conheço louco, se canta porque é feliz, porque sofre ou simplesmente se canta só por cantar, assim como fala só por falar... sozinho, como se requer de um verdadeiro louco. Por vezes faz discursos, que parecem políticos, no meio da estrada de braços abertos. Nessas alturas pergunto-me se não terá passado ao lado de uma grande carreira, pois que os verdadeiros políticos, pouco mais fazem que exactamente aquilo. Outros dias, sempre com o seu cigarro ao canto do lábio, com a sua figura típica de um homem dos anos 60, lá vai pelas ruas cantando o seu fado. Nunca o vi falar com ninguém, a não ser sozinho e contemplando-o interrogo-me muitas vezes o que andará escondido nos seus pensamentos.
Dizem que ficou assim por amor a uma qualquer mulher que ninguém sabe quem é, há quem diga que foi ela que o enlouqueceu para se poder livrar dele, mas isso devem ser coscuvilhices das más línguas... o que é facto é que o nosso louco por vezes enche de música, nas noites frias e escuras, as ruas que sozinhas não tinham o mesmo encanto.

domingo, 10 de outubro de 2010

Limo-nada

Foto de José António retirada do site olhares

E talvez que pouco mais se possa retirar de mim do que este liquido suave de travo amargo. De aparência iluminada, gotejo em pingas lentas o travo de uma saúde agri-doce, mais descrita do que provada, pois que do sabor real, poucos podem dar testemunho...
Retirada em verde e amarelo, numa árvore que não escolhe estação para dividir seus frutos, abraço-me ao doce mel que me acolhe quando de enfermidades me trato, lambendo sozinha feridas que não saram, ardendo à exposição do ácido.
De outros que por mim se familiarizam, em cores de sol posso ser misturada, mas não me adocem as propriedades em enganoso açúcar demasiado refinado...
Porque de pouco mais do que rudeza, amarela pálida sou feita, de pouco mais do que azeda me apelidaram, e de pouco mais de um sumo estragado que enche o copo apenas por simpatia, me sinto, em dias que o meu descolorado ser se torna a bebida de quem, por qualquer coisa refresca a sede de vida...

sábado, 9 de outubro de 2010

* Crónicas de uma terra qualquer * # 1

foto de António Félix retirada do site olhares


No fundo da minha rua há um, um não, dois, dois bancos de jardim. Sempre que por lá passo e que a rapidez ou pressa de viagem me permite, penso naqueles bancos e em como gostava de me poder sentar neles a contemplar a copa da árvore, que lhe faz sombra ou simplesmente o movimento da avenida contígua.
Mas o banco é para os velhos, não para os novos e este é apenas mais um pressuposto que talvez esteja errado. Dantes os velhos não eram velhos, eram anciãos, continham em si todo um saber de experiência feito, de muita coisa vista e vivida, eram tão importantes, quanto importante eram as suas reflexões e o tempo de que disponham para as fazer, uma vez que o corpo já não permitia o esforço físico do trabalho.Hoje sentem-se na grande maioria das vezes impotentes, incapazes até porque a sociedade simplesmente deixou de acreditar no seu saber ou na importância das contemplações.
A sociedade hoje não quer que se pense, quer que se gaste tempo a produzir mecânicamente o que quer que seja, para que as rodas dentadas façam funcionar a máquina que produz dinheiro, mas desfaz os homens, comprimidos que ficam na mecânica da produção.
E os velhos ficam sentados no banco da minha rua e de outras tantas como a minha, olhando o tribunal, onde entram e saem numa azáfama os jovens com os seus fatos de doutores ou as fardas de autoridade, que são os braços de uma justiça mecânica, supostamente igual para todos, mas que é cega e não vê os velhos que pensam que o seu papel está gasto e que já não dá valor ao poder da sua contemplação.
 Os carros passam, vai cada um à sua vida atarefada e os velhos ficam, sentados no banco, e eu dava muito do que tenho para poder sentar-me com eles e pensar, ouvir e saber tudo aquilo que vou levar ainda muitos anos a aprender e que só eles me poderiam ensinar se os pudesse ouvir...

quarta-feira, 6 de outubro de 2010

Horizontes sem formas...

Lost -Foto de Klaudia J retirada do site olhares 


Quem não se sentiu já perdido? quem não perdeu tudo aquilo que algum dia julgou ter? quem não viu escorrer pelas próprias mãos a areia de um tempo que subterrou o que um dia se julgou real, e ficou para trás, perdido naquilo em que a vida vai transformando as nossas vontades...
quem não abriu um dia os olhos e viu que do que lhe consumiu vontades, durante tanto tempo, não restava apenas se não uma mágoa já esgotada pelas cascatas dos olhos que levaram para longe o que o corpo julgou capaz de nos derrotar... e sobreviveu, e o que era areia virou mar e o que eram vontades ficou esquecido e da Primavera foi Verão e de novo Outono, as folhas caíram e despidas das roupagens, sonharam em inventar novas cores, novas formas e tudo muda, tudo fica diferente...
O que te era essencial fica esquecido, num deserto onde as ondas te levaram longe e onde te encontraste mais forte, diferente, mas tu... e o que tens é o que te basta, se potenciado. E para trás ficaram os que se perderam..os que não se acharam, perdoadas todas as tristezas, o barco continua o seu caminho, num horizonte em que daqui, ninguém consegue distinguir as formas...

segunda-feira, 4 de outubro de 2010

Paixão...

tela sobre óleo de nome paixão
por Rui Nascimento


Como esta paixão que me consome, um fogo constante, ardendo por dentro e por fora, colorindo tudo em chamas vermelhas de sangue que pulsa como um corpo em vagas ardentes, negras da tristeza da partida... fica apenas a serenidade de um azul celeste de quem se entregou com os pedaços do pouco tinha, colocados em labaredas dispersas que queimaram o passado que existia...dos restos ardentes, ainda me consumo, por momentos, mas já a chuva me vai apagando a fogosidade... na lareira os restos crepitam, formando música, tristeza de uma lenha que se vê consumida, consumada por instantes perdidos irrepetíveis. Mas a paixão que arde em descaminhos, que procura a mais bela de todas as imagens, essa permanece em ardente constância, sedenta de momentos, inapágavel, inextinguível, incompreensivelmente à procura da sua mais destruidora e consoladora chama...

Despertar

Acordou, ao seu lado ele dormia com aquela cara de menino, que sempre fazia enquanto dormia. Parecia feliz sempre que estava a dormir. Abraçou-o. Gostava de sentir o calor do seu corpo junto ao peito nu e sentir a suavidade da pele que invariavelmente ainda lhe despertava os sentidos.
Ele sentiu o corpo dela junto ao seu e virou-se institivamente para a sentir ainda mais junto a si, e sorriu meio bêbado do sono, mas com o corpo a despertar.
Ela sussurou-lhe quase em segredo : Há quanto tempo estamos juntos?
Nem sei bem, quinze anos ?
Sim, devem ser por volta dos quinze se contarmos o tempo em que andámos apenas a descobrir-nos.
Ele entrelaçou as pernas nela, gostava daquelas pernas torneadas assim presas entre as dele como se daquela forma pudesse de algum modo sentir-se senhor, quase dono, impedindo nem que fosse por momentos que ela se afastasse.
E porque é que continuo a desejar-te como se de cada vez pudesse ser uma nova oportunidade de sentir algo novo, diferente?
Ele sorriu de novo, gostava quando ela tinha aqueles instantes de sinceridade em que dizia coisas que ele muitas vezes nem entendia. Era isso que ainda o despertava, aquele jeito selvagem que ela tinha de ser imprevisivel, em tudo, tanto ali, como em qualquer outra coisa, aquele horror que ela parecia nutrir pela monotonia excitava-o, embora por vezes se chateassem exactamente por causa disso.
Como sempre não foi capaz de lhe explicar tudo o que pensava:
Se calhar é porque nos amamos...
E amar alguém é só corpo?
Não, tem muito pouco de corpo, e é por isso que os nossos corpos se continuam a pedir, porque tudo em nós se encaixa, mesmo quando temos opiniões diferentes.
Sabes o que mais gosto em ti? Esse jeito de seres imprevisivel e nunca me abandonares, mesmo quando ambos sabemos que não tenho razão.
Ele voltou a sorrir, sim era amor, esta forma quase telepática de comunicar, esta forma unissona de sentir...preenchimento era o que sentia como se estivessem constantemente em penetração, mesmo sem haver contacto.
Anda cá...apeteces-me...

sábado, 2 de outubro de 2010

Ao frio e à força de um mar

Dispo-me de vontades ocas e entro no mar revolto das relações humanas. Não ignoro os perigos dessas vagas de força incerta, bravios movimentos das espumas da emoção.
São em tons róseos, os céus de superiores vontades, onde nuvens mantêm as posições de vigilia, lembrando que os bons tempos não são eternos.
A água é fria e o corpo nu reage à mudança de temperatura pedindo movimentos. Movimentos que chegam em esforço perante a ferocidade do mar. E o sal que pica na pele mistura-se com o sal intrinseco, aquecendo imagináriamente o corpo nu e frágil às intempéries, levando a movimentos ora soltos, ora esforçados que permitem retirar prazer dum banho aparentemente incómodo, mas que foi fruto da minha vontade.
E a vontade não se esmorece com as altas e desordenadas ondas que me fazem submergir no frio, mas que me devolvem o prazer de me comandar, perante o esforço das minhas próprias braçadas...

sexta-feira, 1 de outubro de 2010

As imagens e as palavras caidas...

Foram-se as imagens...sumiram-se do meu pensamento como se nunca lá estivessem estado. Ficaram as palavras que enchem folhas e folhas de um caderno imaginário onde deposito pedaços do meu corpo que vão ficando sem vida e se desagregam do todo, formando partes autónomas, mas sem vida.
A razão venceu por fim o corpo, e a realidade venceu a ilusão. A tenda de espelhos abandonou a feira e a comédia das visões destituiu as emoções do seu trono primordial, confundindo os cinco sentidos deixando apenas que um sexto da totalidade tome forma. O sexto sentido alerta a campainha do pânico, mas desta vez ninguém abriu a porta. Finalmente o eu toma o seu lugar na casa e as lembranças foram arrumadas em caixas no sotão da memória.

Songs of...

<object width="425" height="344"><param name="movie" value="http://www.youtube.com/v/6yXRGdZdonM?fs=1&amp;hl=pt_PT&amp;color1=0x3a3a3a&amp;color2=0x999999"></param><param name="allowFullScreen" value="true"></param><param name="allowscriptaccess" value="always"></param><embed src="http://www.youtube.com/v/6yXRGdZdonM?fs=1&amp;hl=pt_PT&amp;color1=0x3a3a3a&amp;color2=0x999999" type="application/x-shockwave-flash" allowscriptaccess="always" allowfullscreen="true" width="425" height="344"></embed></object>

Hoje é o dia da música, internacional ou mundial, não adiantam denominações quando se fala da forma de expressão que mais gente arrasta, que mais emoções provoca no ser humano, desde sempre... e pode ser usada de tanta forma... como forma de resistência, de repressão, como forma de criar ilusões ou simplesmente de criar e fazer sentir entrar dentro de nós algo que mexe. Mexe com a parte física fazendo-nos mover em ritmos acertados ou desacertados e mexe-nos com a outra parte da existência, aquele que nos faz ter coragem de subir montanhas atravessar mares de solidão ou simplesmente acreditar quando já ninguém se lembra no quê é que se acredita. E depois há aqueles que atrvés das suas representações ou actuações nos fazem transpor mundos e SENTIR, seja o que for mas é o sentir que nos mantém vivos e humanos. É por isso que a música faz parte de mim, do meu ritmo cardíaco, do meu movimento enquanto me desloco, dos meus sonhos enquanto estou acordada...