Dizem que tenho Alma de poeta. É possível, mas para além de poeta, sou mulher, fui criança, sou ser humano. Na grande maioria das vezes vejo e sinto coisas que só sei expressar por palavras, por imagens. É um jeito de ser... é o meu jeito de pôr a Alma no scriptum...

sábado, 5 de fevereiro de 2011

A escrevente




Sento-me, acendo a luz da secretária e viro-a para a parede. Necessito da sensação de escuro (talvez o ambiente seja essencial, não sei) como que a criar um espaço onde possa estar em sossego; só eu e o que estiver para vir. 
Geralmente não penso muito sobre o assunto: as palavras, as ideias, as imagens passeiam comigo (ou em mim) enquanto vou escrevendo, como se dialogassem comigo  (tal e qual como quando vi esta a imagem: foi como se me perguntassem: porque é que escreves?)
" Porque é que escrevo" (sorri): não sei; eis a resposta mais sincera que já dei a mim mesma. Sinceramente não sei. 
A música toca baixinho - lá mais atrás, num qualquer posto regional - e nem sequer consigo definir muito bem qual é a canção. 
Fará sentindo? 
Escrever sem saber porquê; toda a gente escreve (qualquer coisa pelo menos) e isso não faz dela uma escritora. Talvez uma escrevente (sim provavelmente será isso que sou, uma escrevente), dependente desta necessidade de me encontrar comigo e formar palavras que façam sentido para outros, ou não; não sei sequer se me farão sentido um dia. 
Não gosto de me encontrar com as minhas palavras: por isso calo muitas vezes a voz, para me encontrar de novo com as mesmas ideias em silêncio. É mais fácil assim, não fazem barulho; o que no fundo é uma incongruência, já que existe sempre demasiado barulho nos locais onde se encontra a minha voz. 
De tantas e tantas coisas escritas que se perderam (e a que dei asas e que hoje já não são realmente minhas) é assim neste formato que elas mais me satisfazem, porque não tenho verdadeiramente que me confrontar com o que já foi feito, se não quiser. Aqui tudo é de todos e não sou obrigada a reclamar algo que não sei sequer se realmente me pertence. 
Renasço em cada história, em cada devaneio que me escorre dos lábios quietos, sem um único movimento ou som que não seja a bater do teclado; toma corpo algo que no momento em que é escrito deixa imediatamente de ser meu. Quase como um parto, em que a mãe se esforça para lançar ao mundo algo, que a cada instante que passa, se torna mais e mais distante de si, que o gerou e lhe deu vida.
Não necessito de muita coisa para escrever, mas necessito da escrita para me sentir viva (até para sentir). Como se cada palavra fosse um sopro de vida, um novo fôlego, uma nova esperança de realizar algo que não sei o que é; mas é, ou sou. 
Escrevo porque me sinto viva. Vive um pouco mais de mim , longe de mim em cada coisa que escrevo: assim tento reinventar-me todos os dias. 
 A cada nova história um novo eu toma forma e cor, e dou um pouco de mim para cada um que se encontre nas minhas palavras.



O primeiro dia - Sérgio Godinho


A principio é simples, anda-se sózinho
passa-se nas ruas bem devagarinho
está-se bem no silêncio e no borborinho
bebe-se as certezas num copo de vinho
e vem-nos à memória uma frase batida
hoje é o primeiro dia do resto da tua vida


Pouco a pouco o passo faz-se vagabundo
dá-se a volta ao medo, dá-se a volta ao mundo
diz-se do passado, que está moribundo
bebe-se o alento num copo sem fundo
e vem-nos à memória uma frase batida
hoje é o primeiro dia do resto da tua vida


E é então que amigos nos oferecem leito
entra-se cansado e sai-se refeito
luta-se por tudo o que se leva a peito
bebe-se, come-se e alguém nos diz: bom proveito
e vem-nos à memória uma frase batida
hoje é o primeiro dia do resto da tua vida


Depois vêm cansaços e o corpo fraqueja
olha-se para dentro e já pouco sobeja
pede-se o descanso, por curto que seja
apagam-se dúvidas num mar de cerveja
e vem-nos à memória uma frase batida
hoje é o primeiro dia do resto da tua vida


Enfim duma escolha faz-se um desafio
enfrenta-se a vida de fio a pavio
navega-se sem mar, sem vela ou navio
bebe-se a coragem até dum copo vazio
e vem-nos à memória uma frase batida
hoje é o primeiro dia do resto da tua vida


E entretanto o tempo fez cinza da brasa
e outra maré cheia virá da maré vazia
nasce um novo dia e no braço outra asa
brinda-se aos amores com o vinho da casa
e vem-nos à memória uma frase batida
hoje é o primeiro dia do resto da tua vida.

20/7/2010
Reeditado

2 comentários: