Primeiro era o silêncio. O silêncio; como se das bocas alheias apenas o movimento dos lábios se distinguisse; nenhum som propagava o ar ( ou era o ar que se recusava a dar boleia aos sons que teimavam em sair daquelas bocas que mexiam sem parar). Depois veio o barulho. O barulho; e então era o som que me ocupava o pensamento, entrando sem pedir licença pelos tímpanos, tocando todas as campainhas do pensamento, que funcionava 24 horas por dia sem descanso, como se fosse a engrenagem de uma grande empresa que funcionava apenas com um funcionário. Finalmente as alucinações; essas destruíram as imagens de guardadas realidades, substituindo-as por imagens que me escuso a afirmar que eram verdadeiras, eram projecções inventadas de alucinantes realidades que senti, mas afirmo: não vivi . Foram as alucinações que me trouxeram aqui, a este quarto, onde a alva brancura das paredes reflecte uma luz que ainda não me chegou a um interior quebrado, fendido.
Falava-vos das alucinações: era noite (pelo menos dormia); a voz chegou-me num sussurro imperceptível e despertou-me daquele sonhar em que se sonha estar acordado, mas dormindo se permanece. Só ela ( a voz) percorria os cantos do quarto, como que confundindo os meus sentidos para que não lhe pressentisse a direcção. Falava ( se era voz, falava, claro! embora fosse pouco clara); falava de um alguém que aqui e ali se preenchia com característica facilmente identificáveis por mim como um eu. Um eu distorcido ganhou forma,materializando-se à minha frente, mas com a voz desencontrada da sua localização. Convencia-me ( a voz) que era um eu, que era como eu, enchendo-me a memória com lembranças que eu não conhecia, dizendo-as minhas.
Houve um tempo em que perdi o controlo das minhas acções, a voz comandava todas as direcções para onde olhava, escolhia o objecto da minha atenção. Prendeu-me o interior, ocupou-me os espaços que eram meus e expulsou o eu que eu era, para dar lugar ao eu que supostamente seria. Em algum canto da razão, eu, assistia impávido ao ocupar da mente por um eu externo, que se dizia meu. Permaneci parado, sem reacção, deixando a voz comandar.
Ao seu comando alheei-me do que me movia, deixado-me mover por um qualquer estranho plano de recuperação de algo que nunca tive.
Reprimido, o meu eu mantinha-se quieto, num canto do pensamento, avaliando cada acção, sabendo distinguir ainda, que não era eu mas a alucinação do meu eu que me mantinha alerta durante os dias.
A massa humana que se movia em meu redor, com todas as pressas, ocupações e sensações que externamente a estimula, não passava de amorfa presenta ignorando a batalha onde o meu silenciado eu, estudava a melhor forma de se libertar de um jugo em que ( percebi depois) quase todos os que orbitavam a meu redor se deixaram também mergulhar e submergir. Eramos iguais entre os iguais, presos a eus distantes do nosso eu, idolatrando sensações distantes da nossa essência, removendo imagens reais e recolhendo louvores por acções manipuladas. Fazíamos engrenar uma sociedade de bonecos possuídos por exteriores parecenças, exteriores existências, vazios de um interior construído de autenticidade, da pluralidade da opinião própria.
Eis o que descobri: as alucinações eram conjuntas, a loucura sagrava à minha volta, todos comandados, todos possuídos, todos excomungados do seu próprio eu.
Decidi agir, não poderia manter-me assim. As acções não são mais do que a demonstração dos medos ou certezas que nos ocupam o pensamento; agimos de acordo com a forma que ( na nossa consciência) nos irá trazer mais benefício, ou em último caso menos malefício.
Matei-o! Matei o meu eu perverso, o meu ditador, o eu que me ocupava a mente fazendo-me agir de forma sincronizada com outros eus ditadores, possuidores de outros corpos que me rodeavam. Infelizmente para o matar rasguei meu corpo, abri rios de sangue de onde jorravam os restos gritantes do expulso ocupante.
Cheguei aqui, ao quarto das paredes alvas, dias depois da expulsão, após o recobro do corpo estropiado.
A paz chega-me pelo canto dos pássaros e pelo riso das crianças, que na escola, do outro lado da larga avenida que a separa o local onde me fecharam, aprendem a ser possuídos pelos eus comuns, que nos restringem.
Fecharam -me, sim. Considerado um perigo para a sociedade e para mim próprio, por me recusar a pensar pela cabeça dos eus, que nos querem impor o exterior que constroem para nós.
Loucura, é do que me acusam; loucura por me recusar a manter-me escravo em nome de uma liberdade, que para sentir, sou obrigado a manter-me fisicamente preso.
Para a edição de Fevereiro da Fábrica de letras
É que tu escreves mesmo bem!
ResponderEliminarFogo!!
;)
Não será o que se considera "normal" mais louco do que algumas loucuras? :)
ResponderEliminarBeijinhos
Excelente texto!
ResponderEliminarExcelente música.
Geralmente quando passo por aqui fico em silêncio... sem palavras
ResponderEliminarBjos
Odeio o silencio..
ResponderEliminarbjs
Insana
O silêncio pode conduzir mesmo à loucura, bjs
ResponderEliminarEu gosto do silêncio, até já o disse no blogue da Raquel... há o silêncio calmo e doce, onde não são precisas palavras e o outro... de cortar à faca ;)
ResponderEliminarPelos comentários que leio aqui... associar o silêncio à locura... não sei como se conseguirá, sequer, pensar ;)
Como tudo na vida... tem sempre de se encontrar o equilíbrio... entre uma coisa e o seu oposto... como diriam os chineses... o yin e o yang
Bjos