Dizem que tenho Alma de poeta. É possível, mas para além de poeta, sou mulher, fui criança, sou ser humano. Na grande maioria das vezes vejo e sinto coisas que só sei expressar por palavras, por imagens. É um jeito de ser... é o meu jeito de pôr a Alma no scriptum...

segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

Fragilidades




Re_ nascer
O cansaço depois do esforço,
o descanso depois do cansaço.
Um fio que mantém ainda a ligação.
O corte indolor
O grito de liberdade.
A noção de fragilidade
Um abraço que contém candura
no calor de um aconchego
Podia ser uma vez,
a primeira de todas as horas que se contarão depois
mas repete-se indefinidamente pela eternidade que dura
o tambor que marca o ritmo da vida
Repete e repete, bate e
uma sobrepõe outra: os corpos nascem,
crescem e amadurecem
mas os cortes permanecem
em gritos de liberdade,
a pedirem o calor
de um abraço
e intimidade

sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

Receita de conquistas

CutesyLady


imagem retirada da internet


A que sabe uma conquista?
A doce açucarado de mole consistência?  
A tenro refugado em ponto certo, que faz salivar o esfomeado por alguma coisa?
De que serve chegar a algum lado, se à chegada ninguém te espera? 
A meta está solitária, cortas a fita sozinha e a felicidade da tua classificação será apenas conhecida pelas pedras da calçada, que te vêm chegar.
O prato e a sobremesa ficam vazios, e o estômago não saciado aguarda por mais;  assim se vai de conquista em conquista, procurando saciar uma fome que não é de pão, uma vontade que não é da chegada, nem tão pouco da partida.
Assim se tapam com as faltas, que não apontamos na lista, e nos obrigamos a esquecer - atafolhando o carrinho de compras de conquistas de que apenas necessitamos para tapar uma falta - um vazio que não se preenche só de matéria.

quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

Das certezas e dos sonhos

Foto de Eduardo Costa
retirada do site olhares


Das certezas do que somos, nasce a maior de todas as incertezas...onde poderemos chegar?
Se existem tempos de olhar para dentro, de baixar a cabeça e os braços, de nos deixarmos levar como a corrente de um rio (que corre em movimento desordenado) entre rápidos e quedas de água em força desmedida - haverá em troca o tempo de levantar a cabeça, encher do ar que nos rodeia o peito que anseia pela pureza do que poderá ser nosso. Será o sonho que nos comanda ou as pequenas certezas das vitórias que podemos alcançar?
E um sonho não será tanto mais extasiante quanto a certeza de que pode ser realizado?
Pequenos nadas que nos formam, e nos enformam, são os sonhos a liberdade que se apregoa - mas que se aprisiona nas algemas acinzentadas dos dias iguais.
Não são os protagonismos, nem as esperanças, nem sequer o que foi ou poderia ter sido. É o que será, que nos impulsiona em frente, que nos molda os sonhos vindoros, sem sequer se importar com o restolho dos sonhos perdidos - que ficam ultrapassados, pincelando aqui e ali alguns pormenores de vida que nunca se irão perder...
O que foi molda o que será e são as certezas que geram todas as incertezas...

terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

Acima de todos os males

Quanto de sacrifício vale o sonho? Quanto de nós é apenas o recomeçar contínuo de algo que se persegue? Aquilo que cabe em cada um, é exactamente aquilo que se procura; nem sempre os dias se pautam por boas notas, nem sempre as palavras definem a exactidão do momento presente.
 Ao virar da esquina, a realidade colide e quebra-se, estilhaçando em pequenos vidros partidos o que a mão não segurou.Peças coladas em fragmentos, que desfeiam o que a noite sonhou; palavras, que se definem em dicionários que inventamos a cada momento da vida: semânticas falhadas, gramáticas desorganizadas em regras obsoletas.
A cada significado amorfo de vidas paradas, recordo sentenças de juízes que a vida reformou.
O livro descansa ainda em mãos que o inventam a cada letra: a casuística de histórias de terror - onde imperam dores alheias - transformadas em sangramento do próprio peito, que se quebra em mãos de outros donos que as seguram.
Pois que, do nada me inventei, e para o sonho caminho por raios luares que quebram rotinas.
O coração que bateu descompassado, encontra no ritmo das sentenças que formam sentidos, razões para continuar. 
Sem perder de vista a chave mestra que um dia abriu a caixa fechada - de onde se soltaram melodias -, retrocedo a um tempo onde a trave era o amor próprio, que desabou em implosão; e do pó de um tempo nascido de teias que as aranhas não teceram, a natureza espalha-se da alma ao verdadeiro ser: que abriu a caixa de Pandora e descobriu por último, o significado da esperança acima de todos os males...




reeditado


publicado originalmente a 27.04.2010

sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011




O encontro tinha sido combinado naquele local, àquela hora. Ela esperava.
O fresco da noite fê-la compor o casaco para se proteger do frio. 
Irritava-a esperar, sempre detestara esperas, o seu feitio irrequieto fazia-a abominar os tempos parados; ainda mais ali, num lugar onde não passava quase ninguém. 
Perguntara-lhe sobre o porquê daquele lugar; ele sabia que ela tinha medo de locais solitários, e junto àquela ponte, quase ninguém passava àquela hora. Ele desculpara-se com a proximidade do local onde se encontrava e ela aceitou, afinal qualquer momento perto dele era sempre um momento feliz, mesmo que curto. 
A vida pode ser ingrata, levou tanto tempo para encontrar alguém com quem os silêncios fossem tão preenchidos como as palavras, e só conseguiam estar juntos por breves momentos, devido à intensa vida profissional de ambos.                                                                                              
Envolta nos pensamentos, aproximou-se da ponte, para observar o leito do rio que reflectia as luzes da cidade. Não se via ninguém e ele não chegava. Começava a ficar nervosa, inquieta. Sentia-se observada como se alguém, de longe, lhe controlasse os movimentos. Chamou por ele, na tentativa de perceber se era mais uma das suas tantas brincadeiras, mas ninguém respondeu. Ouviu sons de passos, do outro lado da ponte, mas não viu ninguém. 
O coração batia já descompassado e o pânico queria tomar conta dela. Pensou para si : tem juizo, é a tua imaginação, apenas e só a tua imaginação. De novo o som dos passos. Distinguiu um vulto a apressar o passo na sua direcção e não consegui controlar o pânico. O corpo respondeu aos sinais e ela começou a correr desesperadamente. Na mente passavam-lhe imagens de ressentimento. Porquê aquele local, porquê aquele atraso. Se corria agora, fugindo do agressor, era culpa dele, só dele que não tinha pensado na sua segurança. Chorando e correndo parecia-lhe ouvir os passos cada vez mais próximos e olhou para trás para confirmar a proximidade. Não viu ninguém. 
Ao voltar-se de novo esbarrou em alguém e não conseguiu sufocar o grito de terror.
Era ele, estava nos seus braços e não conseguia parar choro e o descontrolo que sentia, batendo-lhe em defesa nos braços e no peito.
O que foi?
Vem aí, ele vem aí e a culpa é tua.
Quem é que aí vem?
Olharam ambos na direcção que ela apontava e não se via, ou ouvia, qualquer movimento.
Ele abraçou-a e falou devagar e em tom doce, como se com uma criança assustada:
 - Já passou, desculpa, não te devia ter deixado tanto tempo à espera, mas não consegui evitar. Além disso o teu telefone vai sempre para as mensagens.
Deixara o telemóvel em casa, que imprudência.
Agora tudo aquilo lhe parecia ridiculo, mas só agora, que estava finalmente segura nos seus braços. 





reeditado publicado originalmente a 17.7.2010
                 foto retirada da internet

quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

Grão a grão




Quanto tempo leva uma flor a desabrochar?
Quanto tempo leva, até o tempo a levar?
Não raras vezes, a mais simples beleza nasce no meio da solidão; perdida, até ser encontrada pela luz ( ou será ela que a procura?)
É uma luta pela vivência, no verde deserto dos dias.
Persistente, insiste em colorir o seu pedaço de ilusão, pronta a ser capturada por o mais meticuloso olhar.

São os Deuses que pintam as telas da vida, mas é o Homem, na sua efemeridade, que goza o prazer de desfrutar de toda a beleza; porque  é cada grão da ampulheta da vida, que nos foi concedido para gastar, que significa o tudo onde queremos chegar.


E pensar que este texto se me " arrebentou" no pensamento, por causa de ti

quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

O milagre das possiblidades



 



Por vezes existem coisas que parecem não se misturar. O inerte e o vivo não se transformam em uno: é esta a regra. Toda a regra tem uma excepção e é a excepção que confirma a regra. Esta trepadeira cresceu e envolveu o gradeamento, fazendo das suas limitações a forma de se expandir.

Os obstáculos podem sempre ser encarados das mais variadas perspectivas. São essas perspectivas  que  influenciam os resultados que podemos obter. Desistir e continuar são duas das possibilidades; desenvolver, imaginar e criar as nossas próprias formas de enfrentar a vida, é uma outra possibilidade. 
O mundo não nos persegue, somos nós que perseguimos o mundo. Descobrindo o que se procura, encontram-se as várias faces que tudo pode ter. Encarar, sobrepor, desenvolver e continuar sempre, mesmo que para isso se desista agora, para voltar a encontrar mais tarde.

Dos sonhos não se desiste; apenas podemos deixar-nos adormecer sobre eles para que se tornem ainda mais inebriantes.Um sonho é uma excepção nossa, às regras impostas por outros: é o inerte que encontra vida dentro do nosso ser; é o milagre da possibilidade transformado em poder sobre a nossa realidade.

terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

A mutabilidade do ser mulher


Video que descobri no mínimo ajuste



Há pessoas com talentos fantásticos; pequenos talentos, grande talentos. Misturados em doses diversas, são eles que fazem de nós seres tão especiais. Cada um com os seus. Há quem cante, quem pense, que ouça, quem crie, quem goste de descobrir talentos alheios ( para isso também é necessário talento).

Neste vídeo a mulher é vista na sua contínua metamorfose. Por isso me chamou a atenção. Obrigamo-nos demasiadas vezes a comparações absurdas com outras mulheres, que possuem outros talentos, que trazem outros mundos guardados no peito. Esquecemo-nos de nós, de tudo aquilo que merecemos.
Todas nós temos um mundo próprio; uma beleza singular, um cacho de talentos, que florescem e que dão sumo à nossa existência, que alimentam, sem que nos darmos conta, a existência daqueles que nos habitam.  Cada uma de nós são muitas, e muito de nós é essencial para a existência de tantos outros. Eis o segredo deste ser múltiplo: o ser mulher. A beleza reside nos nossos gestos e transmite-se com a utilização consciente daqueles a quem demasiadas vezes desprezamos: os nossos pequenos ( grandes) talentos





Poema do merecer


Suspirando te acolhi
nos aposentos de mim
e te cobri com meus beijos
a flor que em mim colheste
com teus gestos mereceste
que me perdesse em desejos
és parte da minha loucura
envolvo-me, perco-me em ti
fomos um na noite escura
fomos principio, meio e fim
Fui flor, tu borboleta
fui tempo, tu ampulheta
és barco fui tua vela
se fui nuvem,foste chuva
se fui vinho, tu foste uva
foste pintor, eu fui tela

publicado no dia 25 de Abril de 2010 em A minha Alma, o meu blog de poesia

segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

A não morada

O amor é uma não morada: a felicidade sem-abrigo.
Alzheimer da razão, doença da sensação: o amor desprotege o conhecimento da razão.
Esconde-se em vitais condições, e é em batimentos ( suposta musicalidade de vida) que vai torturando um corpo sadio. Nem de mal, nem de menos: sem ele não é possível vivermos. Desobriguem-se as vontades, desabriguem-se as vaidades.
Ditador: fervilham opositores nas sombras; sufocam-se rebeliões de contestatárias certezas: o amor fica, o amor vai. Dançando em ilusórias incertezas ou em provocatórias certezas: o amor não des, não com, não trai...

Aos amantes, aos amados, aos delirantes, aos abandonados...



Os Amantes  ( óleo sobre tela de René Magritte )


                                                                           Feliz dia!

sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

A mosca







O vôo da mosca verde
FOTO DE BENEDETTI RETIRADA DO SITE 



Finalmente tudo terminado. A mesa estava artisticamente decorada, com verdadeiras obras de arte. Os doces dispostos numa outra mesa à parte chamavam atenção pela cores e pelas texturas: convidavam o olhar a saciar-se mesmo antes de  o paladar poder ser satisfeito. 
Os arranjos florais, a louça disposta em combinações atractivas, a fruta a desenhar esculturas multicolores e suculentas; tudo nos seus devidos lugares. 
Dedicação e empenho: horas de combinações possíveis para um resultado perfeito, tentado iludir os sentidos, transformando o propósito final numa sincronizada mistura de prazeres para a vista, com a finalidade de aguçar o paladar.
De pé, a uma distância segura, olhava o seu trabalho - o fruto do seu esforço à frente de uma equipa que se mostrou dedicada e empenhada - o resultado final estava à vista.
Enquanto se inebriava , suspenso no orgulho, um ponto preto chamou-lhe a atenção. Numa rápida passagem, em jeito de provocação, o minúsculo alado ponto negro desenhou um circulo em frente aos seus olhos e continuou o movimento em direcção à sua obra prima.
O terror trespassou-lhe as entranhas: uma mosca. Uma pequena e ignóbil mosca, que com as suas patinhas conspurcadas poderia deitar a perder  horas e  horas investidas na busca da perfeição.
O pensamento correu numa desenfreada busca da solução rápida e eficaz. Sem prever consequências, seguiu o perturbante e voador ponto preto. 
No seu passeio aparentemente inofensivo, a mosca pousou - em jeito de prova gourmet - na estátua do anjo em gelo.
O pano branco - num gesto mecânico, irreflectido - esbarrou com toda a gana de agressividade. contra a minúscula (não) convidada para o banquete.
O anjo, na sua cristalina delicadeza - não suficientemente robusta para o peso do pano, que adejou simulando um projéctil incendiário - resvalou na escorregadia liquidez da fragilidade.
No chão, multiplicado em mil pedaços de uma cortante desilusão, o anjo jazia. 
A minúscula mosca, aturdida pela velocidade dos movimentos levantou voou, e ignorante da sua condição de forasteira não querida, continuou os voos exploratórios.
A raiva cresceu e com ela a diminuta avaliação de riscos e consequências. Em poucos minutos, toda a quantidade de horas gastas na produção de tanta beleza, caíram por terra, desfeitas em cacos, ou despedaçadas em heterogéneos restolhos de diversas texturas, já pouco apetecíveis.
Atónita a equipa assistia ao desintegrar do cenário, transformado em palco de uma guerra persecutória do mestre ao quase imperceptível alado ponto negro.
Em poucos minutos a destruição era total; o mestre possuído por uma passageira mas fatal loucura, continuava bramindo o pano branco como se um sabre se tratasse, e a mosca voava e pousava aleatoriamente fustigada pela perseguição.
Perdido, tudo perdido. Caindo em si o mestre percebeu o desajuste dos meios. Era tarde; a mosca continuou o seu voo e perdeu-se, por a fresta duma janela.
Só o cenário se mantinha: os despojos; relembrando o orgulho perdido e a inutilidade da raiva.


Pontos pequenos e insignificantes não devem ser entendidos por nós como ameaças. Ameaça é tudo o que destrói o verdadeiramente importante; verdadeiramente importante é tudo aquilo que nos mantém. 
Quando o sonho existe e é transposto para a realidade à que saber defende-lo. 
Não devemos atacar nada, nem ninguém sem saber se realmente é uma fonte de problemas, não  nos devemos preocupar desnecessariamente em função de algo que não sabemos se vai acontecer, para evitar que realmente aconteça. 
Não devemos utilizar meios desnecessários para não destruir o que já se construiu, e sobretudo, manter a calma. Para que uma simples mosca passageira, não destruam o produto do sonho, fruto de muita dedicação, é necessário saber aguentar a pressão da sua presença e deixá-la voar para um novo poiso.


quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

Nadando entre a luz e as sombras

Foto de Luís Manuel Antunes, publicada com autorização do autor




Deslizam por entre as águas suavemente. As sombras confundem-se com a luz difusa, que se multiplica nas milhentas partículas dessa humidade que não distingue céu de chão. Aos juncos, cabe a difícil tarefa de marcarem a margem entre o sólido e o liquido, entre o real e o que parece imaginado. 
Supõe-se que voam, as aves, nadando na leve suavidade de embarcações animadas de um movimento doce. 
Na lagoa o tempo dorme enquanto o pequeno bando mostra a sua natureza. Um olhar atento, transforma uma banal viagem num momento resgatado da simplicidade para a imortalidade; o tempo dorme, mas a natureza não. O bando de Galeirões , nadando, ficou para sempre capturado entre a luz das sombras, num momento em que a lagoa e o céu se beijam misturando as suas cores, unindo-se num singular cenário

segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011

Liberdade ou loucura



Primeiro era o silêncio. O silêncio; como se das bocas alheias apenas o movimento dos lábios se distinguisse; nenhum som propagava o ar ( ou era o ar que se recusava a dar boleia aos sons que teimavam em sair daquelas bocas que mexiam sem parar). Depois veio o barulho. O barulho; e então era o som que me ocupava o pensamento, entrando sem pedir licença pelos tímpanos, tocando todas as campainhas do pensamento, que funcionava 24 horas por dia sem descanso, como se fosse a engrenagem de uma grande empresa que funcionava apenas com um funcionário. Finalmente as alucinações; essas destruíram as imagens de guardadas realidades, substituindo-as por imagens que  me escuso a afirmar que eram verdadeiras, eram projecções inventadas de alucinantes realidades que senti, mas afirmo: não vivi . Foram as alucinações que me trouxeram aqui, a este quarto, onde a alva brancura das paredes reflecte uma luz que ainda não me chegou a um interior quebrado, fendido.
Falava-vos das alucinações: era noite (pelo menos dormia); a voz chegou-me num sussurro imperceptível e despertou-me daquele sonhar em que se sonha estar acordado, mas dormindo se permanece. Só ela ( a voz) percorria os cantos do quarto, como que confundindo os meus sentidos para que não lhe pressentisse a direcção. Falava ( se era voz, falava, claro! embora fosse pouco clara); falava de um alguém que aqui e ali se preenchia com característica facilmente identificáveis por mim como um eu. Um eu distorcido ganhou forma,materializando-se à minha frente, mas com a voz desencontrada da sua localização. Convencia-me ( a voz) que era um eu, que era como eu, enchendo-me a memória com lembranças que eu não conhecia, dizendo-as minhas.
Houve um tempo em que perdi o controlo das minhas acções, a voz comandava todas as direcções para onde olhava, escolhia o objecto da minha atenção. Prendeu-me o interior, ocupou-me os espaços que eram meus e expulsou o eu que eu era, para dar lugar ao eu que supostamente seria. Em algum canto da razão, eu, assistia impávido ao ocupar da mente por um eu externo, que se dizia meu.  Permaneci parado, sem reacção, deixando a voz comandar.
Ao seu comando alheei-me do que me movia, deixado-me mover por um qualquer estranho plano de recuperação de algo que nunca tive.
Reprimido, o meu eu mantinha-se quieto, num canto do pensamento, avaliando cada acção, sabendo distinguir ainda, que não era eu mas a alucinação do meu eu que me mantinha alerta durante os dias.
A massa humana que se movia em meu redor, com todas as pressas, ocupações e sensações que externamente a estimula, não passava de amorfa presenta ignorando a batalha onde o meu silenciado eu, estudava a melhor forma de se libertar de um jugo em que ( percebi depois) quase todos os que orbitavam a meu redor se deixaram também mergulhar e submergir. Eramos iguais entre os iguais, presos a eus distantes do nosso eu, idolatrando sensações distantes da nossa essência, removendo imagens reais e recolhendo louvores por acções manipuladas. Fazíamos engrenar uma sociedade de bonecos possuídos por  exteriores parecenças, exteriores existências, vazios de um interior construído de autenticidade, da pluralidade da opinião própria.
Eis o que descobri: as alucinações eram conjuntas, a loucura sagrava à minha volta, todos comandados, todos possuídos, todos excomungados do seu próprio eu. 
Decidi agir, não poderia manter-me assim. As acções não são mais do que a demonstração dos medos ou certezas que nos ocupam o pensamento; agimos de acordo com a forma que (  na nossa consciência) nos irá trazer mais benefício, ou em último caso menos malefício.
Matei-o! Matei o meu eu perverso, o meu ditador, o eu que me ocupava a mente fazendo-me agir de forma sincronizada com outros eus ditadores, possuidores de outros corpos que me rodeavam. Infelizmente para o matar rasguei meu corpo, abri rios de sangue de onde jorravam os restos gritantes do expulso ocupante.
Cheguei aqui, ao quarto das paredes alvas, dias depois da expulsão, após o recobro do corpo estropiado. 
A paz chega-me pelo canto dos pássaros e pelo riso das crianças,  que na escola, do outro lado da larga avenida que  a separa o local onde me fecharam, aprendem a ser possuídos pelos eus comuns, que nos restringem.
Fecharam -me, sim. Considerado um perigo para a sociedade e para mim próprio, por me recusar a pensar pela cabeça dos eus, que nos querem impor o exterior que constroem para nós. 
Loucura, é do que me acusam; loucura por me recusar a manter-me escravo em nome de uma liberdade, que para sentir, sou obrigado a manter-me fisicamente preso.



Para a edição de Fevereiro da Fábrica de letras

sábado, 5 de fevereiro de 2011

A escrevente




Sento-me, acendo a luz da secretária e viro-a para a parede. Necessito da sensação de escuro (talvez o ambiente seja essencial, não sei) como que a criar um espaço onde possa estar em sossego; só eu e o que estiver para vir. 
Geralmente não penso muito sobre o assunto: as palavras, as ideias, as imagens passeiam comigo (ou em mim) enquanto vou escrevendo, como se dialogassem comigo  (tal e qual como quando vi esta a imagem: foi como se me perguntassem: porque é que escreves?)
" Porque é que escrevo" (sorri): não sei; eis a resposta mais sincera que já dei a mim mesma. Sinceramente não sei. 
A música toca baixinho - lá mais atrás, num qualquer posto regional - e nem sequer consigo definir muito bem qual é a canção. 
Fará sentindo? 
Escrever sem saber porquê; toda a gente escreve (qualquer coisa pelo menos) e isso não faz dela uma escritora. Talvez uma escrevente (sim provavelmente será isso que sou, uma escrevente), dependente desta necessidade de me encontrar comigo e formar palavras que façam sentido para outros, ou não; não sei sequer se me farão sentido um dia. 
Não gosto de me encontrar com as minhas palavras: por isso calo muitas vezes a voz, para me encontrar de novo com as mesmas ideias em silêncio. É mais fácil assim, não fazem barulho; o que no fundo é uma incongruência, já que existe sempre demasiado barulho nos locais onde se encontra a minha voz. 
De tantas e tantas coisas escritas que se perderam (e a que dei asas e que hoje já não são realmente minhas) é assim neste formato que elas mais me satisfazem, porque não tenho verdadeiramente que me confrontar com o que já foi feito, se não quiser. Aqui tudo é de todos e não sou obrigada a reclamar algo que não sei sequer se realmente me pertence. 
Renasço em cada história, em cada devaneio que me escorre dos lábios quietos, sem um único movimento ou som que não seja a bater do teclado; toma corpo algo que no momento em que é escrito deixa imediatamente de ser meu. Quase como um parto, em que a mãe se esforça para lançar ao mundo algo, que a cada instante que passa, se torna mais e mais distante de si, que o gerou e lhe deu vida.
Não necessito de muita coisa para escrever, mas necessito da escrita para me sentir viva (até para sentir). Como se cada palavra fosse um sopro de vida, um novo fôlego, uma nova esperança de realizar algo que não sei o que é; mas é, ou sou. 
Escrevo porque me sinto viva. Vive um pouco mais de mim , longe de mim em cada coisa que escrevo: assim tento reinventar-me todos os dias. 
 A cada nova história um novo eu toma forma e cor, e dou um pouco de mim para cada um que se encontre nas minhas palavras.



O primeiro dia - Sérgio Godinho


A principio é simples, anda-se sózinho
passa-se nas ruas bem devagarinho
está-se bem no silêncio e no borborinho
bebe-se as certezas num copo de vinho
e vem-nos à memória uma frase batida
hoje é o primeiro dia do resto da tua vida


Pouco a pouco o passo faz-se vagabundo
dá-se a volta ao medo, dá-se a volta ao mundo
diz-se do passado, que está moribundo
bebe-se o alento num copo sem fundo
e vem-nos à memória uma frase batida
hoje é o primeiro dia do resto da tua vida


E é então que amigos nos oferecem leito
entra-se cansado e sai-se refeito
luta-se por tudo o que se leva a peito
bebe-se, come-se e alguém nos diz: bom proveito
e vem-nos à memória uma frase batida
hoje é o primeiro dia do resto da tua vida


Depois vêm cansaços e o corpo fraqueja
olha-se para dentro e já pouco sobeja
pede-se o descanso, por curto que seja
apagam-se dúvidas num mar de cerveja
e vem-nos à memória uma frase batida
hoje é o primeiro dia do resto da tua vida


Enfim duma escolha faz-se um desafio
enfrenta-se a vida de fio a pavio
navega-se sem mar, sem vela ou navio
bebe-se a coragem até dum copo vazio
e vem-nos à memória uma frase batida
hoje é o primeiro dia do resto da tua vida


E entretanto o tempo fez cinza da brasa
e outra maré cheia virá da maré vazia
nasce um novo dia e no braço outra asa
brinda-se aos amores com o vinho da casa
e vem-nos à memória uma frase batida
hoje é o primeiro dia do resto da tua vida.

20/7/2010
Reeditado